Introdução

O presente artigo apresenta o caminho metodológico percorrido para o desenvolvimento de uma pesquisa histórica. A pesquisa em questão teve como objetivo investigar os antecedentes, as expressões e os desdobramentos do movimento reconceituador na Escola de Porto Alegre, a partir das conjunturas regionais, nacionais e latino-americanas no período de 1950 até 1984. Neste processo, a equipe de pesquisa procurou dar visibilidade ao conjunto de resistências profissionais à ditadura brasileira, evidenciando as posições teóricas, políticas e práticas do segmento sulista no debate reconceituador latino-americano. O estudo teve como eixo investigativo o Movimento Reconceituador na interface com desenvolvimento de comunidade (DC) na história do serviço social gaúcho, por meio do resgate da memória dos seus protagonistas e dos documentos históricos pertinentes. Desta forma, foi possível dar visibilidade às diferentes nuances do debate no interior da profissão, alinhados à cultura profissional do país e de seus laços latino-americanos na conjuntura da época.

Assim, a pesquisa analisou as transformações que se processaram nas diferentes dimensões que constituem o serviço social (trabalho profissional, formação graduada, produção de conhecimento e organização política), dialeticamente articuladas com os processos sociais vigentes na sociedade, em cada momento histórico. A abordagem teórico-metodológica foi orientada pelo método dialético-crítico, uma vez que a intenção foi a de realizar uma análise totalizante e crítica dos fenômenos sociais em foco, a partir da apreensão do real na sua forma dinâmica múltipla, diversa e contraditória. Sendo assim, a investigação não realizou uma reconstrução linear da trajetória da profissão no RS, ao contrário, revelou as contradições, a processualidade e as transformações do serviço social na dinâmica da sociedade, tendo em vista as configurações da questão social, as relações entre as classes sociais e o Estado, o universo da cultura e as matrizes do pensamento social em cada conjuntura histórica. Estes elementos foram considerados centrais para a elucidação do significado social da profissão a partir de uma perspectiva de totalidade.

Entende-se que a qualificação da profissão no tempo presente exige a compreensão crítica do serviço social no movimento histórico da realidade societária, iluminando e projetando os desafios no enfrentamento das desigualdades sociais e na ampliação das lutas por direitos e democracia. Ou seja, sem memória não há história, logo, a desvalorização da dimensão histórica dos processos sociais fragiliza a construção de identidades críticas, posicionadas ética e politicamente no âmbito das relações sociais contraditórias que permeiam a sociabilidade e a formação sócio-histórica gaúcha e brasileira. Verifica-se, a partir da investigação das tendências da produção da área no Brasil (^{Closs, 2015}), fecundas publicações que recuperam a trajetória das escolas em diferentes regiões do país. Contudo, estudos históricos sistemáticos sobre as tendências e configurações do ensino, ou mesmo sobre o trabalho profissional em termos das suas tendências teórico-práticas, ao longo da trajetória do Serviço Social, são diminutos, resultando em uma escassez de materiais voltados ao ensino fundamentos históricos e teórico-metodológicos do serviço social, inclusive com mediações referentes à realidade loco-regional, temática que foi alvo da presente investigação.

1. Os pressupostos teóricos do processo investigativo

O primeiro pressuposto teórico da pesquisa consiste na relação indissociável entre história/teoria/método, a qual é central na compreensão dos fundamentos do serviço social. Dessa forma, a investigação em questão não traçou uma reconstrução linear da trajetória da profissão no RS, ao contrário, considerou as contradições, a processualidade e as transformações do serviço social na dinâmica da sociedade, tendo em vista as configurações da questão social, as relações entre as classes sociais e o Estado, o universo da cultura e as matrizes do pensamento social em cada conjuntura histórica, elementos centrais para a elucidação do significado social da profissão a partir de uma perspectiva de totalidade. Desta forma, objetivou-se não restringir a leitura da história como história restrita ao serviço social, superando tendências endogenistas (^{Iamamoto, 2005}).

Assim, a centralidade da história -enquanto totalidade em movimento e rica de múltiplas determinações e tendências- é o solo do qual é possível apreender o significado social da profissão e sua natureza contraditória nas relações sociais. Para tanto, trata-se da indissociabilidade da teoria e do método marxista na leitura histórica da profissão e da sociedade brasileira, como eixo analítico constitutivo dos fundamentos do serviço social (^{Closs, 2015}). É a fecundidade deste eixo analítico que se identifica nas análises formuladas por um conjunto de autores da área, denominadas por ^{Montaño (2007)} de tese histórico-crítica sobre o serviço social, abarcando a análise da natureza da profissão, de sua gênese, funcionalidade e legitimidade na ordem burguesa.

Trata-se, portanto, da abordagem histórico-crítica marxista como elemento central dos pressupostos orientadores da pesquisa, esta concebida como história em processo, história da humanidade, do modo como se produz socialmente a vida, campo de determinações, mas, também, de tendências engendradas pelo devir histórico das lutas entre as classes sociais (^{Marx & Engels, 1998}; ^{Fernandes, 2012}). É nesta abordagem histórica que se encontra conjugada no enfoque crítico-analítico que busca as conexões e interações do serviço social tomado como totalidade o que contempla sua gênese e desenvolvimento, suas agências de formação, suas práticas, seus sujeitos, seus sistemas de saber, seus valores- bem como o quadro sócio-histórico e cultural em que se insere a profissão (^{Escorsim Netto, 2011}).

A centralidade da apreensão das transformações da profissão a partir do movimento mais amplo da realidade brasileira e suas particularidades regionais também é enfatizada por ^{Cardoso (2007)} e ^{Simionatto (2004)}, especialmente a perspectiva de que os fundamentos do serviço social estão ancorados na análise da profissão como totalidade histórica.

O Serviço Social como totalidade histórica evidencia-se na relação que estabelece entre as mudanças qualitativas das determinações da profissão, isto é, dos seus elementos constitutivos (dimensão interventiva, produção de conhecimento, a formação profissional e a organização política) e as determinações, também qualitativas, das totalidades societárias concretas as quais pertença o Serviço Social. No caso da formação social brasileira, o seu movimento totalizante no processo de mudança dos processos históricos determinados envolve e influencia mudanças qualitativas das determinações configuradoras do Serviço Social nesses movimentos históricos. (^{Cardoso, 2007}, pp. 35-36).

Denota-se da presente conceituação que os fundamentos desta profissão necessitam ser analisados a partir das transformações que se processam nas diferentes dimensões que a constituem (trabalho, formação, conhecimento e organização política), dialeticamente articuladas com os processos sociais vigentes na sociedade, em cada momento histórico. Já a conjugação entre história e totalidade, presente na discussão de ^{Simionatto (2004)}, a partir do processo de ensino dos fundamentos, enfatiza a

[...] abordagem do conteúdo cujo veio articulador é a história, mas a “história ético-política” que leva em conta o aprofundamento do processo histórico de forma integral e não de forma parcial e extrínseca (GRAMSCI, 1999), resgatando o movimento da sociedade em todas as suas determinações, e, neste, o movimento da própria profissão [...] se procede a (re) construção das origens e do desenvolvimento da profissão, resgatam-se a história da expansão e o desenvolvimento do capitalismo, com destaque para a fase monopolista, os projetos societários, as funções e os papéis do Estado e da sociedade civil, o movimento das classes e também os paradigmas teóricos. (^{Simionatto, 2004}, p. 34)

Estas concepções reforçam elementos já destacados, em especial a perspectiva de que a compreensão da profissão adquire inteligibilidade no quadro das determinações sócio-históricas que o engendram, face à questão social, o que é essencial para a própria compreensão das particularidades profissionais e do desenvolvimento histórico do serviço social.

A recuperação do próprio processo de produção do conhecimento do serviço social na sua trajetória histórica no solo da realidade brasileira é central aos fundamentos do serviço social.

É tal produção que evidencia como esta profissão interpreta as relações sociais em que se inscreve, bem como explica e dá sentido ao seu trabalho, logo, precisa ser apreendida de forma historicamente contextualizada. Como ressalta ^{Yazbek (2009)}, “a profissão e o conhecimento que a ilumina, se explicam no movimento histórico da sociedade” (p. 144), sendo este um pressuposto para a “análise dos principais fundamentos que configuram o processo através do qual a profissão busca explicar e intervir sobre a realidade, definindo sua direção social”. Na sequência, a autora assinala que:

[...] essa análise das principais tendências históricas e teórico-metodológicas da profissão, não é tarefa fácil ou simples, pois exige o conhecimento do processo histórico de constituição das principais matrizes de conhecimento do social, do complexo movimento histórico da sociedade capitalista brasileira e do processo pelo qual o Serviço Social incorpora e elabora análises sobre a realidade em que se insere e explica sua própria intervenção. (^{Yazbek, 2009}, p. 144)

Ainda, entre as balizas para a abordagem histórica da profissão, destaca-se a questão social como central na análise da realidade brasileira e do Rio Grande do Sul. Parte-se da premissa de que a particularidade do serviço social é apreendida a partir da sua vinculação orgânica com as configurações estruturais e conjunturais da questão social e das formas de seu enfrentamento (^{Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social [ABEPSS], 1996}). A análise da questão social possui dimensão heurística na pesquisa histórica do serviço social, pois como ressalta ^{Iamamoto (2008)}, o significado social do trabalho do assistente social é apreendido em sua direta conexão com a questão social, considerando que a intervenção profissional se inscreve no âmbito na (re)produção das relações sociais. Ademais, trata-se da perspectiva de que as transformações históricas na questão social implicam novas determinações para o significado social deste trabalho, imprimindo também diferentes contornos para o mercado de trabalho e para as demandas profissionais, considerando as respostas das classes sociais e do Estado às múltiplas desigualdades e resistências sociais decorrentes da apropriação privada da riqueza socialmente produzida, as quais assumem diferentes contornos e expressões em cada conjuntura histórica.

A partir das tendências históricas da questão social, como elemento essencial da realidade que demanda o serviço social como uma especialização do trabalho, é fundamental a apreensão das distintas configurações históricas das políticas sociais na realidade brasileira e rio-grandense, pois as mesmas são uma mediação fundamental na conformação da base sócio-ocupacional da profissão, tendo em vista que as mesmas “(...) são desdobramentos e até mesmo respostas -em geral setorializadas e fragmentadas- às expressões multifacetadas e complexas da questão social no capitalismo (^{Behring & Santos, 2009}, p. 270).

2. O percurso da pesquisa: método, metodologia e trabalho de campo

O corpus de análise foi composto por dados coletados a partir da análise de documentos e entrevistas, tendo a sua seleção sistematizada em três etapas/períodos históricos, quais sejam: 1) Os antecedentes da reconceituação na Escola de Porto Alegre, situados na era desenvolvimentista (1950 a 1964), abarcando as influências do ideário católico e da educação popular; 2) As expressões reconceituadoras na Ditadura Brasileira (1965-1975), evidenciando dinâmica da repressão-resistência no Estado do Rio Grande do Sul e; 3) Os desdobramentos do movimento de reconceituação no processo de crise da ditadura e redemocratização no Brasil (1976-1985), no qual destaca-se a fundação do curso de mestrado na Escola de Porto Alegre, do qual foram analisadas as dissertações sobre desenvolvimento de comunidade, identificando as suas aproximações com o referencial marxista.

Dada a complexidade do objeto de estudo, foi adotado o enfoque misto de pesquisa, que consiste na combinação das abordagens qualitativas e quantitativas (^{Creswell, 2010}). Destaca-se a articulação desse enfoque com o materialismo dialético-crítico para a condução da pesquisa, uma vez que essa estratégia investigativa é coerente com o método marxiano, como destaca ^{Prates (2012)}:

A expressão do real se manifesta e se constitui por elementos quantitativos e qualitativos, objetivos e subjetivos, particulares e universais, intrinsecamente relacionais. Sua separação pode se efetivar apenas para fins didáticos, contudo, ao analisarmos o movimento ou a “vida da realidade”, para usar uma expressão de ^{Lefebvre (1991)}, é necessário reconhecermos que todos estes aspectos precisam ser interconectados para que a explicitação contemple o fenômeno como unidade dialética e tenha, portanto, coerência com o próprio método. (p. 117)

Além disso, a autora aporta semelhanças entre a pesquisa de enfoque misto e o método marxiano, no que concerne os aspectos de transformação e emancipação, a articulação dos dados quantitativos e qualitativos considerando a relevância de ambos, a importância do processo de investigação podendo ser uma etapa pedagógica tanto para o pesquisador como para os sujeitos participantes da pesquisa e, por fim, a centralidade da superação das desigualdades como finalidade da pesquisa (^{Prates, 2012}).

O processo investigativo utilizou como uma das estratégias de trabalho de campo a pesquisa documental histórica. Os documentos levantados e analisados neste percurso foram elencados conforme a pertinência do seu conteúdo para o objeto de pesquisa. Para tanto, a pesquisa definiu como base de coleta e análise os seguintes documentos: currículos, planos das disciplinas, trabalhos de conclusão de curso, dissertações, bibliografias adotadas em cada período, atas, relatórios de gestão, anais de seminários e congressos significativos em cada período. Cabe ressaltar que parte desta documentação se encontra arquivada¹ na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), na Faculdade de Serviço Social, antiga Escola de Serviço Social de Porto Alegre.

Para a categorização e o tratamento das informações contidas nestes documentos, foi utilizada como técnica a análise documental, a qual não pode ser reduzida a uma pesquisa bibliográfica, pois é mais abrangente, trabalhando o documento em profundidade sob a ótica do tema de estudo e do contexto histórico em que o mesmo foi produzido e das entrevistas. O tratamento dos dados foi realizado através da análise estatística para dados quantitativos e análise de conteúdo, com base em ^{Bardin (1977)}, para dados qualitativos. A técnica de análise estatística dos dados quantitativos foi fundamental na etapa de levantamento e sistematização dos temas abordados nos trabalhos de conclusão de curso defendidos na Escola de Porto Alegre. Este procedimento permitiu, por exemplo, a visualização do uso da metodologia de trabalho baseada em caso, grupo e comunidade e sua articulação com determinado período histórico e as correntes teórico-filosóficas que influenciavam o serviço social em diferentes períodos.

Já a técnica análise de conteúdo para os dados qualitativos, prevê diversas modalidades de recortes de análise. Foi privilegiada a análise frequencial e temática que consiste em analisar os dados a partir de categorias, devendo ser enumeradas a fim de verificar quantas vezes surgem nos dados coletados. Além da análise frequencial e temática foi também contemplada a análise do tipo valorativa (^{Bardin, 1977}). As categorias teóricas e analíticas foram relacionadas e aprofundadas a partir da revisão teórica tendo por base o problema e as questões de pesquisa que norteiam esta investigação, além das categorias do método dialético-crítico, quais sejam: a contradição, a totalidade, a mediação e a historicidade.

A segunda técnica de coleta utilizada foi a entrevista. A partir do desdobramento dos resultados da análise documental, foi constituída uma lista com o nome de sujeitos a serem convidados para participar da pesquisa através de entrevistas. Para a escolha dos sujeitos da pesquisa, empregou-se como critério a participação deles na trajetória do Serviço Social no Rio Grande do Sul e sua liderança em processos importantes que definiram os rumos da Escola de Porto Alegre e da profissão. Para o tratamento dos dados coletado com esta técnica, também foi empregada a análise de conteúdo.

Para ^{Martinelli (1999)}, a pesquisa histórica possibilita trabalhar em profundidade as experiências sociais dos sujeitos, captando a singularidade das mesmas de forma articulada ao contexto e à totalidade social, valorizando a narrativa oral e os significados atribuídos à realidade social. Adota-se a concepção de sujeito coletivo, tendo em vista que os participantes da pesquisa possuem uma referência grupal que expressam as vivências de dado segmento social. A partir do enfoque qualitativo e da oralidade, destaca-se o caráter subjetivo, mas também social da memória, pois o que se busca no passado é algo que se interpõe no presente como questão a ser desvendada, explicitada, recuperada. Considerando as teses sobre a história de Walter Benjamin, compreende-se o rememorar também em sua dimensão política, já que “significa trazer o passado vivido como opção de questionamento das relações e sensibilidades sociais, existentes também no presente, uma busca atenciosa relativa aos rumos a serem construídos no futuro” (^{Galzerani, 2008}, p. 21).

As entrevistas tiveram um papel destacado neste processo investigativo, pois permitiu dar voz a sujeitos que foram protagonistas na trajetória histórica da Escola. Esta técnica foi combinada com a técnica da história oral, o que permitiu que as pesquisadoras adentrassem nos processos históricos vivenciados por sujeitos sociais, trabalhando com o que ^{Martinelli (2019 p. 29)} chama de “dimensão política da subjetividade”. Desta forma, coube realizar uma historicização dos sujeitos, quando a recuperação do passado, através da memória dos indivíduos, passa pelo filtro das determinações sociais implicadas nesta memória e nesta história. A história oral neste processo investigativo não foi um aporte para generalizações, uma vez seu conteúdo foi acionado como mais um elemento constitutivo da história, sendo articulado a outros determinantes deste passado. Como afirma a mesma autora:

E geral, não se faz pesquisa utilizando um único recurso ou uma única fonte; a fonte oral é um elemento a mais do qual o pesquisador se e que, articuladamente aos demais, lhe possibilitará construir o texto de sua pesquisa, com vistas aos objetivos estabelecidos. (^{Martinelli, 2019}, p. 34)

Para a realização das entrevistas, foi adotado também o procedimento metodológico da construção de rede de história oral, processo em que a seleção dos sujeito socorre através de indicações dos participantes do estudo, dando vazão aos argumentos e memórias de dado grupo no que tange à temática alvo de estudo, tomando por referência a realização de entrevista marco zero, como ponto de partida da investigação em história oral temática (^{Meihy & Holanda, 2017}). Os depoimentos foram obtidos por entrevistas desenvolvidas mediante roteiros construídos de acordo com a particularidade de cada momento histórico a ser analisado, enfocando as experiências e memórias profissionais do entrevistado e as tendências do serviço social no RS. As entrevistas foram registradas por meio da gravação de áudio e vídeo, possibilitando um amplo acervo de informações, que também foram transformadas em dados textuais, mediante transcrição².

Quanto aos aspectos éticos, eles foram contemplados através da valorização dos sujeitos, da sua experiência social e, sobretudo, da sua escolha consciente e autônoma no processo de participação do estudo. Também mediante uso de termo de consentimento livre e esclarecido, apresentamos um detalhamento à autorização para uso de imagem e a cessão de direitos autorais sobre depoimento oral. A coleta de dados dos documentos e digitalização deles ocorreu mediante autorização dos sujeitos que disponibilizaram o seu acervo histórico.

No ano de 2016 iniciamos a pesquisa realizando estudos exploratórios sobre a temática da reconceituação latino-americana e as conjunturas regional, nacional e latino-americana, abarcando as décadas de 1950-1975. Nessa etapa buscamos amparo nas análises de Octávio Ianni sobre a ditadura brasileira e o pensamento latino-americano. Também se agregaram os estudos de Moniz Bandeira acerca particularidade do trabalhismo no RS e as publicações de Michel Lowy sobre religião na América Latina e o marxismo. Em relação ao Serviço Social foi feita uma revisão bibliográfica a partir das produções de ^{Ammann (2003)}, ^{Netto (2011)} e dos autores reconceituadores da época. Embasado nessas leituras, identificamos a relevância do debate do desenvolvimento de comunidade (DC) como eixo central para entendimento da renovação do serviço social gaúcho.

Em 2017 foi realizado o trabalho de campo, visando identificar a incidência do DC na Escola de POA por meio de pesquisa quanti-qualitativa no “Acervo Lucia Castillo” da PUCRS. Foram categorizados 517 trabalhos de conclusão de curso de acordo com a metodologia clássica da época - caso, grupo e desenvolvimento de comunidade. Nesse levantamento quantitativo evidenciou-se forte influência do DC na escola gaúcha e confirmou-se a centralidade das atividades de DC no processo de renovação. Nesse processo investigativo houve a descoberta da adoção do método Paulo Freire por meio do DC. Evidenciou-se uma precoce influência do ideário desenvolvimentista e da educação popular freiriana. Também foi feita uma amostra qualitativa dentre os trabalhos de DC e DC-Grupo. Também nessa etapa realizou-se um estudo dos fundamentos teóricos da renovação do serviço social com ênfase para o trabalhismo, a esquerda católica francesa e o estruturalismo latino-americano da CEPAL.

Em 2018 avançou-se no estudo da reconceituação na ditadura brasileira e suas particularidades na Escola de Porto Alegre. Nesse momento foi feita ampla revisão em dissertações e teses sobre a ditadura no RS, a qual identificou os movimentos de lutas pela democracia e mecanismos de repressão no estado. Um estudo sobre a participação dos professores gaúchos nos seminários latino-americanos identificados foi realizado nos anais e nos resumos dos eventos publicados na revista Hoy Servicio Social (ECRO).

Já em 2019 foi realizada a devolução pública dos resultados da pesquisa por meio de oferta de disciplina especial no Mestrado em Políticas Sociais e Serviço Social, que foi oferecido concomitantemente como minicurso de extensão universitária na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Um canal no Youtube foi criado com compilados audiovisuais de documentários que abrangem a periodização da pesquisa e os mesmos foram utilizados como recurso pedagógico nas aulas. Ainda nesse ano, houve o avanço na pesquisa de campo, realizando o estudo da fundação do mestrado na escola de POA em 1976. A produção das dissertações de mestrado acerca do DC foi analisada visando identificar os desdobramentos da reconceituação no debate profissional.

3. Resultados preliminares da pesquisa sobre o serviço social gaúcho no movimento de reconceituação

A pesquisa foi organizada a partir de três períodos históricos, que evidenciaram os processos de transformações do serviço social no quadro da realidade brasileira e regional, e seus laços continentais por meio da identificação das mudanças do DC ao longo das décadas de 1950 a 1984, conforme ilustra o quadro a seguir com os resultados preliminares.

Tabela 1 Síntese dos resultados. 

No primeiro período, que abrange os antecedentes da reconceituação na Escola de Porto Alegre, identificou-se a crescente presença do ideário católico francês (Lebret e Mounier) no quadro da Guerra Fria e da Revolução Cubana em 1959. Nessa etapa, verificou-se a influência da ideologia desenvolvimentista e dos movimentos de democratização e de reformas de base que impactaram em tendências de renovação do serviço social. Em síntese do período histórico, identificou-se que as propostas reconceituadoras sulistas nascem em consonância com as experiências dos governos progressistas e democratizantes do período, tendo como marco a radicalização e a mobilização política da Campanha da Legalidade em 1961. Os antecedentes da reconceituação na Escola de POA se assentam na constituição de duas tendências de renovação profissional nos 1955-1965, enraizadas no processo de radicalização do trabalhismo nacionalista de traços anti-imperialistas nos governos municipal e estadual de Leonel Brizola.

Estas tendências consistem na: estrutural-participativa, liderada por Seno Cornely, marcada pela influência do pensamento cepalino, integrando DC, planejamento, política social e técnicas de mobilização e participação social; na pedagógica-cultural, liderada por Lucia Castillo, Zillah Totta e Notburga Reckziegel, marcada pela incidência do pensamento católico francês de Mounier, articulando abordagens grupais, DC com ênfase educativa a partir do pensamento de Paulo Freire e Ernani Fiori (^{Machado, Closs & Zacarias, 2018}).

Ambas as tendências evidenciam as expressões da conjuntura internacional e nacional da ideologia desenvolvimentista norte-americana, como estratégia de hegemonia capitalista na América Latina. Contraditoriamente, impulsionou-se uma consciência nacional-popular e práticas sociais de crítica e enfrentamento ao subdesenvolvimento. As expressões dessa consciência e dessas práticas no RS, considerando o processo de constituição do SS gaúcho, convergem num projeto político de orientação social-democrata e humanista, com duas perspectivas distintas de pensamento: o socialismo evolutivo de Bernstein, com ênfase no Estado, e o socialismo personalista de Mounier, com ênfase na sociedade civil. As bases sócio-políticas das duas tendências de renovação ancoravam-se nas estruturas estatais do governo Brizola, tais como nos órgãos do Departamento de Assistência Social e na Divisão de Cultura da Secretaria de Educação.

No segundo período, nas décadas de 1965 a 1975, investigamos as tendências profissionais no contexto da ditadura civil-militar e os desdobramentos das vertentes do Movimento de Reconceituação Latino-Americano no Serviço Social gaúcho, tendo como marco histórico a realização do 1° Seminário Latino-Americano de Serviço Social em Porto Alegre em 1965, no qual constitui-se na Escola o Reformismo Reconceituador. Observamos que essa tendência passou por duas fases. Na primeira fase, entre 1965-1968, ocorreu a criação e expansão dessa vertente. O Reformismo Reconceituador foi uma proposta de mudanças das bases teórica-metodológica, ético-política e técnico-operativa do serviço social, de caráter progressista, alicerçada na concepção macroestrutural do desenvolvimento econômico latino-americano e no exercício profissional politizador-militante.

A emergência dessa vertente surge no contexto repressivo ditatorial da Operação Limpeza e se origina a partir do 1° Seminário Latino-americano (1965), fruto da articulação latino-americana dos colegas gaúchos com os argentinos e os uruguaios, que constituíram a denominada “Geração 65”. A vertente representou na escola uma aproximação das tendências renovadoras do pré-1964 (estrutural-participativa e pedagógica-cultural) unificadas pelo trabalhismo e pela ideologia nacional-desenvolvimentista. Nos seminários latino-americanos, pode-se identificar, num primeiro momento, entre 1965-1969, que a direção dos debates realizados nestes importantes eventos apresentou como ideário predominante o reformismo de caráter anti-imperialista, pautado na concepção de desenvolvimento da CEPAL, sob a liderança da “Geração 65”.

Na segunda fase, entre 1969-1977, ocorreu a crise e declínio do reformismo reconceituador, ocorre nos Tempos de Chumbo da ditatura brasileira, sob a vigência do Ato Institucional n°5, que generaliza o terrorismo de Estado. O reformismo reconceituador sofreu um processo de isolamento, fruto desse contexto repressivo e da influência norte-americana articulada à vertente da modernização conservadora, manifestada nos documentos de Araxá e Teresópolis, promovidos pelo CBCISS. Os marcos desse processo são a demissão dos profissionais vinculados ao Departamento de Assistência Social do governo estadual (1967), a realização do Seminário da OEA em Porto Alegre (1969), a incidência dos documentos do CBCISS na escola, a retirada do debate político de unidade latino-americana e do DOC do currículo de 1969; as críticas direcionadas ao Seminário Latino-Americano (POA-1972) (^{Scheffer, Closs & Zacarias, 2019}).

A partir do material trabalhado na pesquisa realizou-se uma análise comparativa entre vertente da modernização conservadora (^{Netto, 2011}) e o reformismo reconceituador, conforme quadro a seguir.

Tabela 2 Análise comparativa das vertentes. 

Na terceira etapa da pesquisa, que abarcou o período de 1975-1985, a partir de análise do acervo histórico das produções do programa de Mestrado da PUCRS, verificam-se 18 produções defendidas nessa primeira década. Destas, 17 são dissertações e uma consiste em tese de livre-docência, de autoria do professor Seno Antonio ^Cornely - intitulada “A participação como fator crucial no sucesso dos planos locais integrados”, do ano de 1975. Nos anos iniciais do Programa de Pós Graduação, além da referida tese, identificou-se desdobramentos da reconceituação por meio da produção sobre DC e Serviço Social de comunidade. Os materiais analisados evidenciam os elos de continuidade com o processo de renovação do Serviço Social gaúcho anteriores à ditadura e com a vertente do reformismo reconceituador. Na década de 1980, as pesquisas realizadas no mestrado, especialmente as orientadas por Seno Cornely, apresentam a interlocução com o pensamento marxista de Gramsci nos debates sobre educação popular, bem como verifica-se a incidência de produções divulgadas pelas ALAETS e CELATS, no período após o movimento de reconceituação.

Considerações finais

Enquanto resultado da pesquisa, identificamos que os antecedentes do movimento de reconceituação, na experiência do Serviço Social gaúcho, estiveram influenciados pelas primeiras formulações internacionais e nacionais do desenvolvimentismo. Constata-se essa influência nos anos iniciais da Escola, através dos conteúdos presentes no currículo, assim como nas experiências práticas, identificadas através da análise qualitativa dos trabalhos de conclusão de curso defendidos na época. Essa influência “precoce” traduz uma particularidade do serviço social gaúcho. Na década de 1950 foram realizados dois seminários internacionais em Porto Alegre, voltados para o tema de desenvolvimento de comunidade e educação de adultos, consolidando a influência já existente na criação da escola e expandindo as experiências práticas em comunidades urbanas e rurais, bem como em espaços como o serviço social da Indústria, conjugando elementos do DC, mas também as práticas do serviço social de grupo, com ênfase na educação popular de Paulo Freire.

O reformismo reconceituador se expressou através da participação dos docentes nos seminários latino-americanos, numa busca pela unidade profissional latino-americana, atrelada aos desafios do desenvolvimento do Estado nacional, que visava estabelecer mudanças sociais nas estruturas. O protagonismo da Escola na organização do I Seminário Latino-Americano esteve articulado com a renovação da profissão no quadro da conjuntura sócio-política regional, na transição dos anos 1950 a 1960. Este protagonismo na condução deste processo teve a influência direta do trabalhismo nacionalista, de traços anti-imperialistas nos governos municipal e estadual de Leonel Brizola, juntamente com a gestação de uma consciência nacional-popular e práticas sociais de crítica e enfrentamento ao subdesenvolvimento no bojo da ideologia desenvolvimentista.

Constata-se que o contexto político instalado no Rio Grande do Sul, por sua influência desenvolvimentista e ideário anti-imperialista, repercutiu no processo de construção de uma articulação latino-americana no Serviço Social, processo que se soma à localização fronteiriça dessa região do país - facilitando o intercâmbio com o Uruguai e a Argentina. O Serviço Social Gaúcho recebeu as duas formas de reformismos na elaboração da cultura política do trabalhismo (Partido Trabalhista Brasileiro -doutrinário e pragmático) que tomou particularidades “radicais” na defesa anti-imperialista e democrática dos anos 1960. No pós-golpe civil-militar ocorreu uma unidade “sincrética” de seus antecedentes na escola, articulando a teoria do estruturalismo latino-americano, a ética humanista da esquerda católica e o exercício profissional militante pedagógico junto às classes populares.

Em relação às produções acadêmicas do Programa de pós-graduação da Faculdade de Serviço Social da Escola de Porto Alegre, observa-se um predomínio de estudos sobre a formação e as escolas de serviço social, seguidas pelas temáticas para o desenvolvimento de comunidade, mobilização e educação popular em aproximação com autores marxistas, tendência essa que expressa a continuidade dos debates formulados pela vertente do reformismo reconceituador no contexto da redemocratização.