1. Introdução
O Tribunal da Inquisição, enquanto ferramenta de controle, de natureza jurídico-eclesiástica, suspiro último e perverso da cristandade antiga, «aqui referimos aos cristãos velhos», frente às ameaças de perda de controle dos processos civilizatórios, e, portanto da formação cultural, científica, moral e religiosa dos sujeitos; bem como dos rumos econômicos que tomavam o século XVI que na cosmovisão de época pudesse vir a desregular as engrenagens estabelecidas pela a Igreja e o Estado, em que o ideal de riqueza e prosperidade católica estabelecida, não podia suportar uma teologia da graça protestante ou uma economia dominada por «homens de hábeis de negócio» da «lei de Moisés». Esta ordem que ora era ameaçada careceu de uma estrutura forte o suficiente para a limpeza dogmática, econômica, moral e ideológica; sobre essa última, Rafael Carrasco catedrático de História Moderna na Universidade de Estrasburgo, sustenta que «está claro que la Inquisición no se conformó con la represión de las personas sino que desempeñó un papel fundamental en la lucha ideológica por la limpieza»1.
A vasta produção sobre a Inquisição no Brasil não esgotou o tema, o que possibilita a produção de novos significados como reflexão para o campo. Como sustenta Isabel Maria Braga (2016), temas relativos ao Santo Ofício merecem investigação considerando a importância desta instituição para a sociedade portuguesa da Época Moderna, e que
[...] a documentação do Santo Ofício além de proporcionar informações sobre funcionários e agentes, presos, crimes e penas também pode e deve ser utilizada para estudar outras matérias como por exemplo, relações entre o Santo Ofício e os outros poderes, artes e ofícios, práticas de sociabilidade, redes comerciais, graus de literacia, cultura material e tantas outras, uma vez que os depoimentos as testemunhas e dos presos são riquíssimos em informações inexistentes em outras fontes da época2.
Conscientizar-se da Inquisição no Brasil como um problema, requer admitir a amplitude do campo e delimitar um aspecto que seja significativo e, portanto, digno de pesquisa. A figura do inquisidor, enquanto operador do processo, constitui se parte fundamental para compreensão da instituição e seus efeitos. A pergunta que norteia esta pesquisa é: qual o modus operandi dos inquisidores do Tribunal do Santo Oficio de Lisboa nos processos envolvendo o Brasil Colônia? Fontes primárias e o caso ilustrativo de Alexandre de Lara (1734 a 1739) sugere um recorte temporal do Antigo Regime português (1640 a 1750). Os cem anos do recorte, busca apreender alguns aspectos que produzam sentido sobre a atuação da Inquisição portuguesa no Brasil Colônia. O processo inquisitorial de Alexandre de Lara dá pistas da vagarosa jornada processual de denunciados na Colônia rumo ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, uma vez que a colônia portuguesa na América não teve tribunal próprio. A hipótese desta pesquisa é que a centralização de poder da Inquisição portuguesa marcado pelo absolutismo português tornou a atuação processual ineficiente quase que inoperante, incapaz de agir com diligência no vasto território português. A consequência é uma atuação prática dos inquisidores no rito processual inquisitório conveniente, lenta distante das disposições regimentais do Tribunal.
A metodologia aqui utilizada para compreender o modus operandi dos inquisidores no processo penal na inquisição portuguesa obedeceu a três fases: a) analise dos três regimentos da inquisição portuguesa com atenção especial ao de 1640 que por mais tempo vigorou; b) leitura e analise de um dos manuais dos inquisidores3, confrontando as fórmulas e rito para cada caso com os autos do Processo de Alexandre de Lara4, cristão novo, morador da Freguesia de Santa Cruz de Chapada5 da Capitania de Minas Gerais, Arcebispado da Bahia, acusado de judaísmo em 1734 e sentenciado em 1739; c) para melhor situar o processo em questão, bem como o alcance da inquisição portuguesa no Brasil6 colônia montamos um banco de dados onde foi reunido o montante de 1500 processos de réus residentes ou degredados para o Brasil entre os anos de 1538 a 1806 pelo Tribunal de Lisboa. Para cada processo foram levantados 38 dados7 sendo que neste artigo foram utilizados apenas o que se refere aos crimes e as penalidades impostas nas sentenças, para melhor compreensão do processo analisado.
O tema aqui tratado vem permeando as pesquisas dos autores no campo da história há algumas jornadas. Apresenta resultados de estudos de longa duração em fontes visitadas desde 2016 até o momento presente em arquivos (nacionais e internacionais), dentre eles se destacam: Arquivo Geral das Índias (Sevilha) Arquivo Histórico Nacional de Espanha (Madrid) e Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa), L' IHR - L'Institut de Histoire de la Reformation (Genève). A análise da Inquisição na Península Ibérica vem sendo objeto de estudos dos autores8. De outro lado é resultado de pesquisa no campo da cultura e religião que busca apresentar o perfil formativo do clero egresso de instituições escolares da Igreja Católica nos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais9.
A pertinência desta pesquisa que tem por objeto o rito processual penal da inquisição portuguesa abre caminho para investigação de outros temas a ele vinculado. Pensar o rito, ainda que este ao longo de sua aplicação em algum momento do recorte temporal desta pesquisa tenha se reconfigurado ou adaptado às demandas do tempo, seja por força das necessidades ou por decisão política, ele lança luzes às práticas dos sujeitos e instituições no seu tempo, descortinando sua cosmovisão que por si denunciam suas relações de poder, projetos e crenças ainda que ofuscados em linguagem transvestida de virtude religiosa.
2. Antecedentes e instalação da Inquisição Moderna nos reinos de Portugal
Diversos são os eventos que antecedem a instalação do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição nos reinos de Portugal. Autores como Alexandre Herculano10 e outros apontam fatos que traduzem as relações diplomáticas entre a Coroa portuguesa e a Igreja de Roma no processo de instalação do Santo Ofício nos domínios de Portugal. A revisão literária não permite de certo modo classificar de imediato em fases tais eventos, mas nos permite citar com certa segurança aqueles fatos que contribuíram decisivamente na constituição do direito penal nas matérias de heresias ao longo da história da cristandade no ocidente. No período entre a igreja primitiva até o Concílio de Latrão IV em 1215, o julgamento dos hereges tinha por fundamento o depositum fidei concebido pela tradição e o magistério da Igreja; a operação do conjunto positivo do direito eclesiástico bebia de fontes definidas e «consagradas» em 13 concílios, inúmeros sínodos locais, nas 'sagradas escrituras' e em textos da patrística, ou em outros termos a defesa fé por meio dos «Padres da Igreja» que contribuiu no aperfeiçoamento do direito eclesiástico.
Há um longo caminho até a chamada inquisição moderna, objeto deste artigo, que perpassa pela inquisição medieval. Três documentos normativos pontifícios são fundamentais para a compreensão da instalação da Inquisição medieval, que são as bulas Ad Abolendam (1184), Vergentis in Senium (1199), e Ad Extirpanda (1252)11. O pontificado de Lúcio III no séc. XII é marcado por uma série de medidas contra heresias e entre elas a Constitutio Apostolica Bula Ad Abolendam de 4 de novembro de 1184, por muitos considerada o marco da santa inquisição. O texto da bula tem por fim
[...] abolir a depravação pervertida das heresias que no tempo presente tem começado a popular em várias partes do mundo, deve-se provocar o eclesiástico com vigor, através do qual, com o auxílio do poder imperial, não só seja esmagada a insolência dos hereges nos próprios esforços de sua falsidade12.
A Ad Abolendam institui práticas que mais tarde foram incorporadas ou aperfeiçoadas nos processos da inquisição portuguesa como o auxílio do poder temporal; a excomunhão perpétua de todo aquele que experimente ou ensine algo distinto ou contrário ao magistério da Igreja Romana, bem como a mesma sentença a aqueles que os acolham ou protejam; a condução do herege a julgamento de juiz secular para punição e confiscação dos bens dos condenados. Outra prática recomendada na Ad Abolendam são as visitas anuais nos territórios eclesiásticos pelo arcebispo ou bispo, ou por delegação destes um arquidiácono ou outras pessoas na busca de notícia de que aí vivem hereges, e para, além disso, fomentar a cultura de delação a qualquer suspeito de heresia como reuniões secretas ou mesmo o simples fato do afastamento do convívio habitual, da vida e dos costumes dos fiéis.
Com o pontificado de Inocêncio III e a publicação de sua Bula Vergentis in Senium em 25 de março de 1199 autorizam «medidas um tanto severas contra os defensores, acolhedores, colaboradores e adeptos dos hereges»13, o que reforça a delação como dever do cristão, visto que a Bula proíbe
[...] com todo rigor que, de maneira nenhuma, ninguém se atreva, de algum modo, a acolher os hereges, defendê-los, favorecê-los ou apoiá-los; se alguém se atrever a fazer algumas dessas coisas, a não ser que se empenhe em ratificar sua ousadia, (...)que seja considerado infame e não seja aceito para exercer cargos públicos ou tomar parte nos conselhos citadinos ou participar das eleições para tais cargos e tampouco seja admitido como testemunha. [...]14.
Não delatar, em outros termos significa: acolher, defender, favorecer ou apoiar, sendo a penalidade a perda de todos os direitos do sujeito, bem como a ineficácia ou anulação de seus atos que compete ao seu status ou função social. «Caso se trate de um juiz, que sua sentença não tenha valor algum, nem causa alguma seja apresentada ao seu tribunal (...) se for clérigo, que seja deposto de todo cargo e benefício»15.
Em 1231 o papa Gregório IX aceita a constituição de Frederico II que dispunha sobre a pena de morte de hereges e forma o Tribunal da Inquisição sob tutela da Ordem dos Pregadores (Dominicanos). Evento que mais tarde influenciara outro texto fundamental para compreensão do período e objeto que é a Bula Ad Extirpanda do Papa Inocêncio IV de 15 de maio de 1252 que traz a promulgação de leis e constituições contra heréticos. Como aponta Leandro Duarte Rust16no período em questão as ações inquisitoriais enfrentaram obstáculos em razão do acirrado conflito entre Inocêncio IV e o imperador Frederico II morto dois anos antes da Ad Extirpanda. Esta Bula autorizava a tortura como meio para confissão, penas variadas e no extremo dos casos quando o herege não abjurasse era levado ao braço da justiça secular para a execução da pena de morte.
Do século XII ao XVI quando é definitivamente instalado o Santo Ofício em Portugal no reinado de D. João III, muitas foram as ocasiões e empreitadas diplomáticas afim de apaziguar e atender aos interesses da Igreja de Roma e a Coroa Portuguesa. Breves e bulas foram expedidas por papas e leis editadas por Portugal, entre elas a Lei de 14 de junho de 1532, conhecida como o terror dos cristãos-novos. A instituição da Inquisição na sua forma mais completa se deu pela bula de 16 de julho de 1547 ao Rei D. João III.
Estabelecido o Tribunal do Santo Oficio da Inquisição dos Reinos de Portugal e seus domínios, a hierarquia composta por seus ministros e oficiais como dispõe o Regimento de 1640 que vigor ou por mais anos, contava com funções internas ao tribunal como os inquisidores, sendo três em cada tribunal, e um inquisidor geral no Conselho Geral; quatro deputados, um promotor e quatro notários, sendo um com atribuição de tesoureiro; dois procuradores de presos; um meirinho com quatro homens ao seu serviço; um alcaide e quatro guardas dos cárceres secretos; um porteiro da mesa de despacho; três solicitadores; um despenseiro; um médico, um cirurgião e um barbeiro; um capelão, um alcaide e um guarda para o cárcere da penitência.
Com funções externas ao tribunal havia qualificadores e revisores; visitadores e comissários com seus escrivães e familiares; visitadores das naus de estrangeiros com escrivão, guarda e interprete a seu serviço; e por fim, familiares do santo ofício espalhados pelo domínio de todo o reino.
A partir do disposto no texto do Regimento de 1640, elaboramos o organograma abaixo que demonstra toda engrenagem de poder hierárquico dos ministros e oficiais do Tribunal do Santo oficio.
Sobre o oficio que cabe a cada ministro e oficial do Santo Ofício, Sônia Siqueira o faz ao traçar um perfil da disciplina na vida colonial à luz dos regimentos da Inquisição17. Outros pesquisadores esclarecem em pormenores os impactos e influencias da inquisição moderna nas colônias de Portugal, o que bem reflete a hierarquia apresentada na imagem anterior18.
3. Inquisidores: Seu magistério, poderes e privilégios
O ministério de inquisidor ocupa o mais alto posto na hierarquia do ordenamento jurídico nos Tribunais do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal. A Bula Primeira da Santa Inquisição, Cum ad nil magis do Papa Paulo III em 23 de maio de 1536, dirigida aos bispos de Coimbra, Lamego e Ceuta constitui comissários e inquisidores no reino de Portugal. A referida bula expressa em seu conteúdo alguns aspectos importantes para a compreensão da natureza e papel do inquisidor nas relações de poder que implicam o seu magistério.
O primeiro deles é o papel institucional decisivo na caça e punição dos males contra a fé, isto é, ele ordena, exerce e executa o rito processual, em outros termos ele preside o processo. Entre os 'males que assolam o mundo' no início do Século XVI na visão da Igreja, estão os luteranos, maometanos, que «cometem uma ofensa gravíssima a divina majestade e provocam escândalo a fé ortodoxa»19, os judeus que «favoreceram ritos contra o cristianismo, o luteranismo e outras seitas heréticas»20.Estes crimes não encerram aí, outros tantos compõem o index dos males como: bigamia, sodomia, heresia, proposições heréticas, superstição, feitiçaria, bruxaria, revelações, blasfêmia, apostasia, perjúrio, sacrilégio, solicitação, abuso da ordem e celibato, pacto com o demônio, poligamia, desacato a eucaristia, idolatria, falsificação de documento, protestantismo21 (calvinismo, luteranismo), libertinagem, falsidade, falso testemunho, luxúria, atentado a moral cristã, atentado ao Santo Ofício, e outros que amplia o alcance de atuação dos inquisidores.
O segundo aspecto, refere ao regime de padroado entre a Igreja de Roma e o Reino de Portugal, na Cum ad nil magis o Papa Paulo III impõem ao rei de Portugal a parte que lhe cabe no processo de aliança Igreja/Estado como aparece nas letras da bula, «por tal, você, João deve eleger alguém de sua confiança e que seja devoto de seus e nossos signos para representar a Inquisição em seu reino, por isso que sejam escolhidos inquisidores nos reinos»22. O terceiro aspecto é o da obediência, muito embora o ofício do inquisidor sobre põe aos feitos na engrenagem dos negócios do Santo Oficio, seus poderes não são infalíveis no campo da obediência à autoridade do magistério da Igreja, sobre essa matéria na Cum ad nil magis os mesmos «devem estar imbuídos da virtude da santa obediência e o ofício dos inquisidores deve estar relacionado ao justo direito e as comuns disposições, dentro das formas literais com continência e fidelidade»23.
O Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal ao dispor da estrutura hierárquica para cada tribunal prevê três inquisidores, de igual preeminência, no entanto o inquisidor mais antigo toma assento na primeira cadeira e a este na condição de decano recai a execução dos despachos do Conselho Geral e da Mesa. A ele também cabe à ordem para outras diligências para o bom funcionamento do Santo Oficio. Além das qualidades que são comuns a todos os ministros e oficiais da Instituição como ser natural do reino, cristão velho, limpo sangue, não ser descendente de mouro, judeu, ou recentemente convertido à fé católica, ausência de infâmia pública, nunca ter sido preso ou penitenciados pela Inquisição, ser de boa vida e costumes, que o capacite no cumprimento das atribuições de sua função; o serviço de inquisidor requer qualidades previstas no Direito Canónico, em Breves Apostólicas, bem como as dispostas no Regimento do Santo Ofício de que sejam homens,
[...] licenciados per exame privado em alguma das faculdades de Theologia, Canones, ou leys, & que tenham ao menos 30 anos de idade, pessoas nobres, Clérigos de Ordens sacras, & que primeiro hajam servido no cargo de Deputado & nele tenham dado mostras de prudência, letras, & virtudes, assi para saberem resolver, & decidir causa que hão de julgar, como também para nelas se haverem com grande inteireza, & igualdade: Livres de toda paixão, & respeitos, que costumam perturbar o animo dos juízes; de maneira que nem o favor, & piedade cheguem a ofender a justiça, nem o rigor exceda os termos da temperança. [...] (sic)24.
Seja como for, as ditas virtudes não impediram que um número considerável de ministros incluindo seis inquisidores tivesse seus nomes inscritos no Livro de inventário dos processos cíveis e crime25 que apresenta o registo dos autos cíveis ou crime dos familiares do Santo Ofício, da família do Inquisidor Geral, dos senhores do Conselho Geral, inquisidores; deputados e outros ministros e oficiais do Santo Ofício. No período mencionado seis foram os inquisidores tiveram seus nomes envolvidos em autos cíveis ou crime.
No campo da legislação civil os inquisidores possuíam respaldo de feitos como dispõe o título VI do segundo livro das Ordenações do Reino de Portugal, que dispõe do cumprimento dos mandatos dos inquisidores por qualquer oficial da justiça civil em sua jurisdição,
[...] que sendo requeridos pelo Inquisidor Mór, ou pelo Conselho Geral della e pelos Inquisidores seus substitutos e delegados, ou per cartas suas, requerendo-lhes sua ajuda e favor, que cumpram seus requerimentos e mandados no que tocar à Santa Inquisição, e execução della, prendendo e mandando prender as pessoas, que elles mandarem que sejam presas, por serem culpadas, suspeitas, ou infamadas no crime da heresia, e os tenham presos em suas prisões, ou os levem onde os ditos Inquisidores os mandarem estar, ou levar [...] (sic)26.
Outros privilégios que gozavam os inquisidores e seus ministros, no território da América Portuguesa, embora não houvesse aí instalado nenhum tribunal, estavam assegurados nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia propostas e aceitas no Sínodo Diocesano em 12 de junho do ano de 1707, presidido por Dom Sebastião Monteiro da Vide. Como traz as constituições na condição de pessoas públicas por direito comum canônico são reservadas ao papa excomunhões,
[...] contra os Inquisidores, e os Deputados por elles, ou pelos Bispos para o Officio da Inquisição, que por ódio, amor, ou proveito temporal contra Justiça, e suas consciências deixão de proceder contra alguma pessoa em caso de heresia: e os que pelas mesmas causas, e pelo mesmo modo presumem molestar algum, impondo-lhe falsamente, que é herege, ou que lhes impedem a execução de seus officios da Inquisição. [...] (sic.)27.
Para, além disso, ainda gozam da proteção canónica contra todos em geral que atentarem, impedirem ou perturbarem os inquisidores em seus negócios. Deste modo, cabe excomunhão,
[...] Contra os senhores temporaes, ou quaesquer outros Ministros de Justiça de qualquer dignidade, e preeminência que sejão, que por qualquer via impedirem, ou perturbaremaos Bispos, ou inquisidores nos negócios tocantes ao Santo Officio, ou se intrometteren a julgar, ou conhecer do crime da heresia [...] (sic.)28.
Como atestam a legislação civil e canónica, a estrutura do Santo Ofício possuía efeito em suas demandas, privilégios para seus emissários e oficiais, e alcance em todas as colônias portuguesas. No caso específico da América Portuguesa, mesmo havendo um arcebispado não foi instalado aí um tribunal, um dos fatores que pode ter contribuído com o enfraquecimento e atuação da instituição como todo, na colônia.
4. A atuação dos inquisidores nos processos inquisitoriais
A atuação dos inquisidores nos processos penais do Tribunal do Santo Ofício estava estabelecida no Regimento Geral, bem como no Manual dos Inquisidores. Quanto ao Regimento da Inquisição Portuguesa, este passou por quatro mudanças consideráveis posteriormente as primeiras instruções de 1541 fragmentadas em cartas dispondo sobre inquisidores, estrutura dos tribunais, visitas, procedimentos diversos, formulários para abjuração e juramento, e outros. O primeiro Regimento é o de 1552 escrito por determinação do Cardeal Infante Dom Henrique e em 18 anos de sua vigência sofreu várias alterações29. Datado de 1613 o segundo Regimento do Santo Oficio da Inquisição dos Reinos de Portugal por mandado de Dom Pedro de Castilho, Bispo Inquisidor-Geral e Vice-Rei dos Reinos de Portugal, vigorou por apenas 27 anos até 1640 quando por ordem de Dom Francisco de Castro, Inquisidor-Geral do Conselho de Estado do Rei passa vigorar o terceiro Regimento do Santo Oficio da Inquisição dos Reinos de Portugal com duração de 134 anos.
Com a expulsão da ordem da Companhia de Jesus dos domínios de Portugal e com as reformas pombalinas, sob o pretexto de que os jesuítas influenciaram negativamente os trabalhos do Santo Ofício, em 1774 entra em vigor o quarto Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, ordenado pelo Cardeal da Cunha, dos Conselhos de Estado e Gabinete do rei, e Inquisidor-Geral dos reinos de Portugal.
Optamos por analisar o processo penal, objeto deste artigo, em três partes30 subdividas nas etapas que compõem o fluxograma penal sob a autoridade dos inquisidores e seus ministros. Paralelamente apresentaremos as etapas dos autos do processo de Alexandre de Lara que julgamos mais pertinentes a esta discussão. A primeira delas inicia com a publicação do Edital de Fé perpassando pelas etapas processuais que culminará na entrega do réu aos cárceres do Tribunal. Abaixo elaboramos, fluxograma que ilustra a primeira parte do processo penal:
O Edital da Inquisição ou Edital de Fé, que costumeiramente se lia no primeiro domingo da quaresma em todos os distritos dos tribunais da Inquisição portugueses a saber: Lisboa em (1539); Lamego, Tomar, Coimbra, Porto em (1541) extintos uma década depois com exceção do Arcebispado de Évora e mais o de Goa (1560) como sustenta Bruno Fleiter31.
O texto do edital de fé era dividido em três partes: na primeira parte os inquisidores se apresentam como autoridade apostólica constituída contra todo crime de heresia e apostasia, como sendo sua função a «de procurar reprimir, & extirpar todo o delicto, & crime de heresia, & apostasia, para mayor conservação dos bõs cotumes, & pureza de nossa santa Fé Catholica» (Sic.)32 para, além disso, pela autoridade apostólica manda que toda e qualquer pessoa, seja eclesiástica, secular ou regular de qualquer grau em 'virtude da obediência' sob pena de excomunhão maior, venham a denunciar o que souberem dos crimes elencados no edital.
Na segunda parte são elencados os crimes contra a fé: judaísmo; islamismo; luteranismo e calvinismo; atentado contra o Santíssimo sacramento; negação do céu, inferno e purgatório; negação dos sufrágios da Igreja; negação do sacramento da penitência; dúvida sobre dogmas da fé; negação ou atentado contra os sacramentos da ordem, matrimônio, seja casando publicamente após ter feito voto de castidade ou mesmo fingindo ser sacerdote, seja casando pela segunda vez estando vivo o marido ou mulher do primeiro matrimonio; negação da liberdade de escolha entre bem e mal; crença na fé sem obras para a salvação da alma; crença de que não há mais que nascer ou morrer; negação da intercessão dos santos; irreverência à relíquias e imagens dos santos; negação de liturgias aprovadas pela Igreja; negação da superioridade papal e sua faculdade de conceder indulgencias33 (todos argumentos que estão no marco da teologia cristã de orientação protestante); negação da obrigação do jejum; negação de que é pecado mortal a fornicação; negação da pureza da Virgem Santíssima; práticas de feitiçaria, pacto com o diabo; práticas de astrologia e adivinhações; portar ou ler livros proibidos; solicitação de homens ou mulheres no ato da confissão por ministros ordenados; atentado ao ministério do Santo oficio; e pôr fim a prática de sodomia, este último como o «nefando e abominável pecado».
Em processos levantados nesta pesquisa, envolvendo o Brasil na Inquisição de Lisboa, entre os anos de 1538 a 1806, os crimes com maior incidência foram: judaísmo, bigamia e sodomia34. Para compreender a incidência dos crimes de judaísmo, bigamia e sodomia envolvendo o Brasil, cabe refletir o fator de território, e sendo o Brasil distrito da Inquisição de Lisboa, não significa que estes crimes tenham sido cometidos no território brasileiro, visto que dos 1019 réus que incorreram nestes crimes citados, 298 foram degredados para o Brasil, o que significa que os ditos crimes foram cometidos além-mar, jugados em Lisboa e como pena ou parte dela degredados para o Brasil.
A última parte do Edital de Fé diz dos prazos do processo, ocorre que na prática, os prazos eram relaxados, visto que não se pode aí falar em celeridade de processo com réus do além-mar, como é o caso das denunciações no território do Brasil distrito da Inquisição de Lisboa. Quanto ao alcance destes editais, uma lista das instituições eclesiásticas e das freguesias onde deveriam ser publicados/encaminhados os editais de fé, consta referente ao Arcebispado da Bahia, 128 locais, sendo 94 freguesias ou igrejas com o respectivo vigário, seja ele colado ou encomendado, e para fechar a lista 15 aldeamentos ou missões, 13 conventos e 6hospícios35. Uma das Freguesias em questão era a de Santa Cruz de Chapada, residência do cristão novo Alexandre de Lara.
Uma vez publicado o Edital da Fé, como o instrumento que confere legitimidade aos súditos do rei e da Igreja, agentes de uma cosmovisão em que ressalta o imperativo moral como o 'dever de delatar', quer seja como resultado de um processo formativo do sujeito em que dogmas de fé sobressaem ao exercício da razão, e neste caso, não há que se esperar uma ação moral que não seja pautada no que mandam as vozes que ecoam dos púlpitos, como autoridade dos céus que não podem ser contestadas. Ocorre que no trânsito penal, que se vê em uma leitura atenta em grande parte dos processos, resta claro que por decisiva, esclarecida e livre escolha de 'punir os seus', muitos por outras razões que excedem essencialmente a 'defesa da fé, como as intrigas de vizinhança, relações de poder e política, questões de ordem econômica e tantas outras dimensões que assumem o lugar de defesa ou ataque pessoal do denunciante. Neste último caso, a denunciação, torna-se um instrumento perverso de um controle social, não só vertical, isto é, instrumento de controle do Estado e Igreja sobre os súditos, como um instrumento de controle horizontal, onde um igual ataca o outro sob o pretexto de salvaguardar a fé e os bons costumes.
Sobre denunciações Rezende & Souza36 identifica e analisam denúncias inquisitoriais nas Minas Gerais setecentistas (1692 a 1821) registradas nos fundos dos Cadernos do Promotor e Documentação Dispersa do Tribunal da Inquisição de Lisboa e o conjunto das denúncias apontadas pela pesquisadora demonstra ainda que em outros termos a natureza dos crimes elencados no edital de fé detalhado anteriormente.
Os inquisidores ou na ausência destes os visitadores ou comissários possuíam um rito para a recepção das denunciações, em outros termos, uma forma de receber as denunciações como se vê no manual dos inquisidores. O delator/denunciante era submetido ao seguinte rito: a) Jurar segredo sob os 'Santos Evangelhos'; b) Declarar a sua qualificação, bem como a do denunciado, a saber: idade, qualidade, naturalidade, moradia, ofício que exerce, nome do cônjuge se casado ou, solteiro, ou, eclesiástico e de qual ordem, se é cristão velho, ou novo; c) Indicação do local e data onde ouviu ou viu o fato ou questão que ora denuncia; e d) Sequência de quatro blocos de perguntas: 1° Como e de onde tem conhecimento do fato denunciado, se viu ou ouviu, em que data, quais foram às palavras que ouviu e em que ocasião o denunciado proferiu, quantas vezes, e por fim se as testemunhas do fato se escandalizaram e o que disseram; 2° Qual o estado do denunciado, se em uso pleno da razão, se bêbado, se é dado à zombaria, perturbado ou irritado ou outro acidente; 3° Se alguma das testemunhas repreendeu o denunciado e se este insistiu no ato, o que entende e qual sua relação com o denunciado, e se ele denunciante comunicou o fato a outras pessoas, e comunicou em qual ocasião e o que disseram sobre o denunciado, e quem mais sabe dele; e 4° Qual a motivação em fazer a denunciação, qual a razão de não ter denunciado antes, se diz ou deixa de dizer algo por ódio ou amor, e se a denunciação é de boa intenção37. Um notário tomava nota de todo o rito, e ao final era assinado pelo inquisidor, visitador ou comissário conforme o caso.
O processo seguia com a inquirição de testemunhas citadas que chamadas à mesa eram perguntadas em primeiro lugar se tem conhecimento ou suspeita da razão pela qual foi chamada, se alguém pediu para que deixasse de dizer alguma verdade a que fosse perguntado; segundo, se tem conhecimento de que alguma «pessoa dissesse, ou fizesse cousa algu'a que seja, ou pareça ser contra nossa Sancta Fé Catholica, e contra o que ençina a Sancta Madre Igreja de Roma, e contra o recto e livre procedimento do santo officio da Inquisição»38 (Sic.). Respondendo ou não, o inquisidor ou o ministro ao seu serviço trazia ao conhecimento da testemunha inquirido a natureza do fato a ser confrontado, sem mencionar os nomes dos envolvidos. Para esta etapa do processo o manual dos inquisidores propunha a seguinte formula:
[...] Foy lhe dito, que nesta mesa, ou no SanctoOfficio As informação, que em taltempo, e lugar em presença de certas pessoas a tal proposito certa pessoa. (calando os nomes) disse taes palavras, ou fez tal, ao que ele se achou presente, e o viô: que por reverençia de S'e recorra bem em sua memória, e declare toda a verdade, como se obrigado_Resp. ettz Se confessa parte.Foy lhe dito que nesta mêsa a informação que a dita pessoa além do que esta declarado disse, ou fez mais tal no mesmo tempo, e lugar; que por reverençia de D's selhe pede e encarrega recorra em sua memoria e diga a verdade inteiramente conforme sua obrigação. [...] (Sic.)39.
Satisfazendo ou não ao conteúdo da fase de denunciação, a testemunha era liberada não cabendo a ela mais perguntas, a ela era lido o seu testemunho registrado no processo.
A etapa seguinte consistia na inquirição de testemunhas sobre a fé dos denunciantes que obedecendo ao mesmo rito do processo, acrescentava sobre o conhecimento ou suspeita da razão em ser chamado pelo Santo Ofício e se foi orientado por alguém no que dizer ou deixar de dizer algo à mesa. Por fim era perguntado se conhecia o denunciante, quando conheceu e em qual circunstância; por fim qual o que sabe sobre o denunciante como: sua moral, seus costumes, se tem inimizades 'públicas, ou secretas' quem são essas pessoas e por quais razões, se é de dizer verdade ou falsidades, se tem notícias que o denunciante tenha dito falsidades e a que pessoa40.
No processo havia possibilidade de retificação tanto das denunciações quanto dos testemunhos etapa em que era concedida a oportunidade do denunciante ou testemunha, acrescentar ou emendar alguma informação. A retificação poderia ser feita de imediato, depois de lido o termo de denunciação ou de testemunho; ou em outra ocasião, inclusive a mando do inquisidor ou de seu ministro, em que se perguntava ao denunciante, testemunha ou mesmo um preso se fosse o caso, se o que havia denunciado, testemunhado ou confessado estava escrito na 'verdade' ou se era necessário emendar algo, nomes, etc.41.
Tomadas todas as diligências quanto às denunciações e testemunhos, o título IV do Livro II do Regimento de 1640, dispõe que: «Quanto mais graves são os crimes, principalmente aquelles, que se comettem contra nossa S. Fê, de q' conhece o S. Offício, tanto impôrta, que com mayor consideração se proceda nelles a prizão dos culpados»(Sic.)42 Para tanto, o conteúdo é entregue ao Promotor do Santo Ofício para que este possa requerer por parte da justiça a prisão dos culpados por meio de requerimento. Assim o processo seguia com o requerimento do promotor; apelação do promotor, sendo o caso; mandado de prisão; e entrega do réu ao alcaide dos cárceres. O dito Requerimento do Promotor43 constava dos elementos de culpa que na percepção do promotor justificasse a prisão dos denunciados para a apreciação dos inquisidores, que poderiam aceitar ou não o requerimento. Embora os inquisidores, no despacho do tribunal tivesse plenos poderes para tal, o fiat iustitia não atendido pelos inquisidores, poderia a critério do promotor apelar pela prisão de culpados junto ao Conselho Geral como instância superior.
O mandado de prisão44 do Processo de Alexandre de Lara cumprido pelo Familiar45 Antônio Francisco Leitão da Comarca de Serro Frio demostra algumas destas adaptações, a começar pela certificação do réu, visto que não havia um consenso quanto ao seu sobrenome «ou Lopes ou Lara» que sendo cristão novo, o sobrenome «Lara» de origem judaica era estigmatizado e ao que parece o réu utilizava no Brasil o sobrenome «Lopes» que é de origem espanhola. Cumprir o mandado, neste caso, fez necessário um procedimento de atestado do réu no auto de entrega em 02 de fevereiro de 1734 na Vila de Nossa Senhora do Pilar na casa do Padre Doutor Freyre Batalha Comissário do Santo Ofício. O réu de início declara ser Alexandre Pereira e depois Alexandre de Lara, inquerido sobre sua naturalidade e genealogia, constatou ser ele o denunciado pelo Tribunal de Lisboa. Em seu auto de entrega declara que
[...]era Cristão novo e filho legitimo de Braz Nunes de Lara e de sua mãe Brites nunes e que o dito seu pai fora depois casado com outra mulher Izabel Henriques e que era natural da cidade da Guarda, e batizado na Igreja de Nossa Senhora da Vitória da cidade eque ele veio para estas Minas no ano de mil setecentos e vinte e dois, e que não sabe, nem tem noticia de que seu pai, nem mãe fossem penitenciados pelo santo officio, (...) que duas irmãs dele a saber uma por nome Maria, que por sobrenome não pereça ser dos mesmos pais dele réu, outra por nome Brite só da do seu pai, e da sua madrasta foram penitenciadas pelo Santo Oficio,(...) quinze anos mais ou menos que estando ele réu na cidade da Guarda em casa do seu pai e madrasta os mandou a esta a casa de uma Izabel Mendes X. N. viúva moradora na rua do Muro na dita cidade da Guarda (e para) casa fora com as ditas duas suas irmãs Maria e Brites com outra sua irmão inteiro por nome Luisa, que na dita casa ficaram todo o dia fazendo um jejum do rito hebraico e assim mais rezando uma reza do mesmo rito que ele não lembra, e que não tem outra coisa nesta matéria daqui até o tempo presente, o que estando pronto para assim jurar aos Santos Evangelhos [...]46(Sic.).
Procedida à entrega do réu aos cárceres47 e lavrado o termo da entrega48 inicia-se a fase das sessões de admoestações que tinha como finalidade a confissão de suas culpas pelo réu, além das admoestações o processo constava com três sessões na ordem seguinte: sessão genealogia, sessão in genere, esessão in specie, estas antecediam a apresentação das provas da justiça que pesavam sobre o réu pelo promotor de justiça denominada de libelo da Justiça. O quadro abaixo apresenta o que denominamos segunda parte do processo penal na inquisição portuguesa:
Tão logo entregue aos cárceres do Tribunal, o réu era chamado à mesa dos inquisidores para a sua primeira admoestação com a maior brevidade possível como orienta o manual dos inquisidores. Nesta etapa ao réu era perguntado sobre o comportamento dos ministros que o prenderam e qual tratamento lhe foi dado, se praticaram ou não algum agravo, se pediram alguma coisa, se aceitaram da parte do réu algum 'recado ou sinal' a ser dado a alguma pessoa. A prática sugere a permanente desconfiança e controle dos ministros hierarquicamente submetidos à autoridade dos inquisidores. Num segundo momento o réu era alertado da 'graça' e o 'mais certo caminho' para dar solução ao seu caso, sendo a confissão de suas culpas o caminho necessário, tendo o réu tempo e lugar para o conhecimento de seus erros que pesam em sua memória. Para tanto, o dever do réu de confessar verdadeiramente suas culpas como fim, o 'merecimento da misericórdia' que segundo a fórmula, só a «Madre Igreja costuma uzar com os bons e verdadeiros confidentes» (Sic.)49.
Realizada a primeira admoestação, procedia-se com a confecção do inventário do réu50 independentemente se fosse ou não prezo com sequestro de bens esta prática compunha o rito do processo. Ao réu nesta etapa era cobrado o juramento de dizer a verdade e manter segredo do feito, além disso, ao réu cabia declarar todos os seus bens móveis e de 'de raiz' indicando o seu estado, suas dívidas e o que tem a receber, bem como indicação de provas e escrituras se fosse o caso para eventuais confrontações.
No Processo de Alexandre de Lara o inventário51 datado de 02 de novembro de 1734, para o Inquisidor Agostinho Gomes Guimarães, o réu declarava ter um patrimônio considerável somando 27 páginas. Em bens de «raiz» declarou possuir uma roça de milho, cana, feijão no valor de150.000réis; entre os bens móveis declarou possuir 400 oitavas de pedras verdes «esmeraldas», sem saber ao certo o valor; 60 ou 70 oitavas de pedras vermelhas «rubis» sem saber o valor; outras 15 oitavas de pedras brancas que duvidava tratar de diamantes no valor de1.600 réis cada, estando estas em posse do meirinho do Ouvidor do Serro Frio; mais ou menos 285 oitavas de ouro a ele devidos por um número considerável de pessoas; escravos, cavalos, fornecimento de milho e outros bens totalizando um valor entorno de 760.000 réis. Declarou um montante de 134.000 réis em dívidas, em parte já consignada na ocasião da prisão. As posses e movimentações descritas no inventário de Alexandre de Lara demonstra que sua atividade não se limitava a «lavrador de roça de milho e cana» como qualifica o processo, mas de um hábil «homem de negócios»52 dado os empréstimos e vendas em ouro, diamantes, escravos e cavalos. Bens estes negociados entre os anos de 1722 quando chegou às minas Gerais a 1734, data de sua prisão com confisco de bens, confirmado mais tarde em sentença pelo Santo Ofício em 1739.
Neste interim podia o réu estando preso nos cárceres do tribunal, querer confessar suas culpas, e a este recurso o manual dos inquisidores dá nome de admoestação que se fará ao üéu que queira confessar as suas culpas. Esta etapa consistia no réu «trazer em conhecimento de suas culpas, com vontade deliberada para as confessar, q'o advertião e requerião da parte de Nosso Sor' Iesu Christo as confessasse todas»53 (Sic.) ao réu era lembrado que nada se esconde do tribunal e tudo se castiga onde há falsidade. Feita a admoestação é lavrada à confissão do réu, que sendo lida a este era assinada pelo inquisidor e por ele. Caso o réu fosse menor, era nomeado um curador, entre os ministros do tribunal em questão para assinar em seu lugar.
A etapa seguinte do processo era a sessão de genealogia que consistia em admoestar o réu quanto ao exercício de consciência que fez desde a última admoestação pela mesa, se as quer confessar, ou acabar de confessar. O Regimento de 1640 em seu título VI, § 3, do livro II, dispõe que a sessão de genealogia não se fará às pessoas que fossem presas por culpa de heresia formal, bem como aquelas que fossem presas pela segunda vez. Quando era o caso, em seguida os inquisidores cuidavam de inquerir o réu quanto a sua genealogia, além de sua qualificação a de seus irmãos, cônjuge e filhos, se fosse o caso, a de seus pais e avós maternos e paternos. Uma das razões da genealogia é saber se até o quarto grau de parentesco do réu havia algum relaxado, penitenciado ou preso pelo Santo Oficio. Ainda era perguntado ao réu quanto a sua vivência com os sacramentos da igreja, onde os recebeu, quem testemunhou ou ministrou os ditos sacramentos como padrinhos e bispo. Se fosse o caso, retomavam a pergunta sobre a suspeita do réu pela causa/razão de que foi preso, e concluía-se a sessão admoestando para que «abra os olhos da alma, e procure traser a memória todas suas culpas, e as confesse inteiramente nesta Mesa»54 (Sic.). No caso do Processo de Alexandre de Lara na sessão de genealogia, ficou constatado que dois de seus parentes foram presos pelo Santo Ofício, sua irmã Clara e sua madrasta Isabel Henriques.
Na admoestação de crença quando fosse o caso, inqueria-se ao réu quanto ao tempo 'apartado' da Igreja, seu conhecimento quanto à incompatibilidade da fé que ora professara fora da Igreja com os ensinamentos da 'Fé Católica', bem como a tradição de fé católica. Perguntavam a que rezava e natureza das orações, e se ainda assim acreditava em Cristo e o tinha por messias prometido. Os elementos de fé que inicialmente são levantados nesta sessão, claramente incorrem no judaísmo, Islamismo e protestantismo sejam práticas luteranas ou calvinistas, tidos como 'crime'. Também era perguntado se durante o período referido, recorreu ao sacramento da penitência para confessar os ditas culpas, e se ainda neste período acreditava nos 'Sacramentos da Igreja' e se cria neles. Por fim, o que motivou ou motiva o abandono da seita e retorno a fé católica, e se ainda de todo está apartado de tais práticas. A depender do teor da confissão, a admoestação poderia satisfazer ou não satisfazer55 aos inquisidores, sendo que no último caso, a sessão de crença era repetida sempre após a confissão do réu em outras admoestações.
A seguinte era a sessão in genere feita conforme a 'seita' em que o réu era acusado. A ele era perguntado «se afastou de nossa Sancta Fê catholica e fez autos contrarios a ella»56 (Sic.) seguido pela «crenca e ceremonias da ley, ou ceita» (Sic.). A sessão era finalizada como na sessão anterior admoestando o réu quanto ao cuidado em suas culpas se quer confessar ou acabar de confessar. A sessão In specie era feita aos réus negativos, em que eram admoestados por todas as culpas e em particular pelas que pesavam sobre ele nas denunciações. As chamadas perguntas in specie inqueria o réu sobre suas culpas sem dizer o lugar, dia, tempo, pessoas e circunstância determinados para que o réu não pudesse vir a tomar conhecimento da testemunha57.
Vencidas as sessões citadas, o réu era submetido à admoestação antes do Libello se fazia sem dar juramento ao réu, admoestando pelo cuidado com as suas culpas e o alertando de que o Promotor da Santa Inquisição naquele tribunal estava para apresentar um libello, no qual o acusaria por seus crimes, sendo melhor a sua confissão antes do dito libello lhe ser lido. A esta altura, o réu não confessando mais culpas procedia-se com a leitura do libello pelo promotor58.
Uma vez lido o libello com as acusações, os inquisidores procediam com a aceitação de procurador para a defesa do réu. Era chamado um dos advogados do Santo Ofício e apresentavam se as culpas e réu a ser defendido, tomava-se o juramento do procurador sob os evangelhos de que faria bem e fiel a defesa do réu em questão, e de que não o deixaria indefeso59. Neste tempo ocupava-se o procurador quanto a forma e entrega da defesa60que recebida pelos inquisidores, despachavam-se conforme o direito e o Regimento do Santo Ofício com a expedição de carta de defesa se fosse o caso, com perguntas a serem feitas a testemunhas indicadas pela defesa do réu61.
O processo seguia com a admoestação antes da prova da justiça como aquela antes da prova do libelo se fazia sem tomar juramento do réu, isso se reservava caso ao final como forma de atestar a verdade do feito. Era perguntado pelo cuidado quanto às culpas do réu, se as queriam confessar ou terminar a confissão iniciada; alertava-se do estado de perigo quando não se satisfazia a informação da justiça. Nesta admoestação, faziam saber ao réu o andamento de seu processo e iminente publicação das provas da justiça que pesavam sobre ele, sendo bom conselho as confessar antes da dita publicação62.
Não havendo o que confessar, ou findada a admoestação antes da prova da justiça, dava-se a publicação da prova da justiça63contra cristão novo ou velho preso nos cárceres do Santo Ofício, que conforme o manual dos inquisidores, na forma da Publicação64 não se referia aos nomes das testemunhas, circunstâncias ou qualquer informação que pudesse o réu delas tomar conhecimento. A mesma regra se aplicavam ao tempo, cerimonias, práticas e outros objetos que viessem a constituir provas, de tal modo que estes não constituíssem pistas claras/ exatas em que pudesse delas tirar proveito. A publicação era lida para o réu que era sob juramento aos «Santos Evangelhos» perguntado sobre a veracidade do conteúdo das provas.
Com a publicação das provas da justiça, cabia ao réu por seu procurador, providenciar junto à mesa o termo de entrega de contraditas65 na forma estabelecida no manual dos inquisidores. Fazia-se a nomeação de testemunhas para contra ditas66 chamando-se a mesa o réu para nomear as testemunhas como meio de provar-se inocente em algum artigo da prova da justiça. A própria forma das contraditas põe a hipótese de que sendo uma testemunha, inimigo do réu, não se deve dar crédito ao seu testemunho, podendo o procurador pedir como nulos os ditos67. As testemunhas nomeadas para contraditas não poderiam ser cristãos novos, parentes do réu até o quarto grau, infames ou presos anteriormente pelo Santo Oficio. Isto feito, por despacho dos inquisidores era expedida carta para contraditas68 a oficial do Santo Oficio com perguntas para serem feitas às pessoas nomeadas na forma do regimento.
Recebidos os ditos testemunhos, em despacho final do processo, a mesa reunida com a presença dos inquisidores, ordinário e deputados, como dispõe o título XIII do livro II do Regimento de 1640, era lido por extenso todo o processo para que ordinário e deputados tomassem conhecimento da matéria para o voto. Lido o processo, o réu era chamado à mesa, posto de joelhos e alertado por um dos inquisidores que os ministros estavam para despachar e caso fosse sua vontade poderia dizer algo para o bem de sua causa. Era permitido aos deputados e ordinário caso quisessem dirigir alguma pergunta ao réu antes de ser mandado de volta aos cárceres69. Isto feito procedia com o voto como dispõe o título XIII, § 5, livro II do Regimento de 1640:
[...] Haverá por vencida aquela condenação, em que concordar a maior parte dos votos, hora se vote em pena de tormento, de degredo, pecuniária, ou qualquer outra, ou finalmente em haver o réu de abjurar de veemente, ou de leve suspeito na Fé; e entender-se-á, que está vencido pela maior parte, quanto houver cinco votos e deles formarem três conformes na mesma condenação; por que isso ficará vencido ainda que os dois sejam diferente na pena, ou em absolver o Réu da instância. (...) Havendo somente duas condenações diferentes, assim nos graus de tormento, como em qualquer outra pena, e não se acostando a alguma delas a maior parte dos votos como fica dito, se fará o assento, conforme a menor condenação; se houver três condenações diferentes seguirá a do meio; e em caso que sejam quatro, ou mais, em que também haja discrepância, se escolherá a condenação, que fica mais perto da maior [...] 70.
Sendo o réu no acórdão sentenciado a tormento, sob a justificativa de indícios de não ter feito confissão por inteiro, ou não satisfazer a prova da justiça, ou pelo seu afastamento da fé católica, elaboravam o assento do tormento71 que define a sua execução a arbítrio dos inquisidores e a juízo do médico e cirurgiões. Aprovado o dito assento, o réu era chamado à mesa para proceder-se com a admoestação antes de se ler a sentença do tormento72 onde era alertado do cuidado com as suas culpas, como de costume em todas as admoestações, e a ele se fazia «saber, que este seu processo era visto por pessoas de letras e consciência, e nelle se tomou assento que seja posto a tormento para q' diga e declare toda a verdade»73. A admoestação nesta etapa a juízo da mesa poderia ou não ser suficiente, não sendo, e o réu indo à sala dos tormentos, assistido pelos ministros, como dispõe o Regimento de 1640 em seu título XIV § 5 do livro II
[...] E sendo o réu começado a atar, irá o notário fazer-lhe um protesto, dizendo, que em nome dos inquisidores, e dos mais ministros, que foram no despacho de seu processo, protesta, que se ele réu no tormento morrer, quebrar algum membro, ou perder algum sentido, a culpa será sua, pois voluntariamente se expõe a aquele perigo que pode evitar, confessando suas culpas e não será dos ministros do Santo Ofício, que fazendo justiça, segundo os merecimentos de sua causa o julgam a tormento [...] 74.
Despido de suas roupas como orienta o manual dos inquisidores, o réu era assentado diante «da polê, ou, lançado sobre potro» as duas formas de tormento usualmente utilizadas pela inquisição portuguesa, sendo ali admoestado a confessar suas culpas, a fim dos inquisidores «se usar com elle de muyta misericordia» (Sic.), não levando assim o tormento adiante. Dando por satisfeito o assento, ou por alerta dos médicos, o réu era desatado da polê ou do potro e levado ao cárcere para ser curado. Qualquer confissão do réu na sala de tormento era ratificada 24 horas depois da tortura. Confessando ou negando, o teor era levado à mesa para novo julgamento, podendo o réu ser posto novamente a outro tormento.
Superado a etapa do assento de tormento, quando era o caso, o réu aguardava pelo Auto Público de Fé, celebrado com pompas e circunstâncias, no caso do Tribunal de Lisboa com a presença do rei ou de um representante seu. Uma das partes da dita solenidade era a leitura da sentença de cada réu, proclamada em alto e bom tom para o réu e presentes. Retomando ao processo de Alexandre de Lara, acusado de judaísmo, confrontado a outros 640 processos de acusados do mesmo crime, e a outros 860 processos de acusados por crimes diversos, é notável a incidência de penalidades em determinados crimes, como é o caso do confisco de bens nas sentenças envolvendo judeus75. Entre os acusados de judaísmo residentes ou degredados para o Brasil pelo Tribunal de Lisboa, como se vê no gráfico abaixo,49%dos judeus tiveram seus bens confiscados em sentenças de 1538 a 1806.
Fonte: Autores com base em Processos do Tribunal do Santo Ofício 1536/1821 disponibilizados pelo Arquivo Nacional Torre de Tombo.
O acórdão dos inquisidores, ordinário e deputados que julgaram os autos do processo de Alexandre de Lara, o declarou herege apostata da Fé Católica, incorrendo em «sentença de excomunhão maior e confiscação de todos os seus bens para o Fisco e Câmara Real, em as mais penas assim direito contra semelhantes estabelecidos»76. A sentença de Alexandre de Lara foi lida no Auto Público de Fé celebrado na Igreja do Convento de São Domingos em 08 de outubro de 1739 na presença do Rei Dom João V, constando abjuração herética em forma, cárcere e hábito penitencial perpétuo, instrução nos mistérios da fé, e penitencias espirituais. Como se vê no gráfico anterior, dos 640 processos de réus acusados de judaísmo, 70% foram condenados ao uso do hábito penitencial, seja provisório ou perpétuo, 55% condenados a cárcere penitencial perpétuo; 25,4% condenados a abjuração de forma.
Fonte: Autores com base em Processos do Tribunal do Santo Ofício 1536/1821 disponibilizados pelo Arquivo Nacional Torre de Tombo.
Analisando o perfil das penas dispostas em sentenças do mesmo período, aplicadas à réus acusados por crimes diversos (com exceção do judaísmo), no que se refere a confisco de bens, apenas 3,7% dos acusados tiveram seus bens confiscados. Entre os 32 processos em questão, 15 processos são de réus acusados de sodomia, e o restante distribuídos entre processos de acusados de: calvinismo, luteranismo, protestantismo, bruxaria, blasfêmia, bigamia e outros.
Considerações Finais
Esta pesquisa a partir do processo de Alexandre de Lara (1734 a 1739) demonstra a estrutura hierárquica do Santo Ofício, seus regimentos, manuais e arranjos processuais como elementos que contribuem para a compreensão do alcance e eficiência do que está instituição se prestou ao projeto institucional na América Portuguesa. O processo de Alexandre de Lara evidencia o que a literatura sobre a inquisição na América portuguesa tem tratado e demonstrado acerca da questão judaizante. Conforme apontamos acima o judaísmo estava entre os primeiros crimes nos processos envolvendo o Brasil.
A centralização de poder do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição Portuguesa tornou a atuação processual ineficiente no vasto território português. Os antecedentes, instalação e consolidação da Inquisição Moderna nos reinos de Portugal demonstram traços das lutas entre a Igreja de Roma e o Estado Português que se consolidava mais tarde no século XVI marcadamente absolutista. Embora os inquisidores em seu magistério gozassem de poderes e privilégios temporais e eclesiásticos, além de se servirem da estrutura político-administrativa como se vê nas Ordenações e Leis do Reino de Portugal, as atuações destes ministros nos processos inquisitoriais quase sempre foram marcadas por uma realidade processual em que não refletia necessariamente a norma disposta em seus regimentos.
O que nos permite pensar o processo? Que a concepção de culpa da cristandade moderna é movimento de livre escolha do sujeito em direção contrária à misericórdia rumo ao pecado. Viver é experimentar o fardo da culpa do pecado original, é suportar a Civitate hominis rumo a Civitate Dei de que fala Agostinho, que não comporta outro enredo que acolha a diferença de judeus, islâmicos, protestantes e outros. Refletir o processo penal do Santo Oficio no seu tempo, requer alguma reflexão entorno dos processos que regulam nosso tempo, entre tantas implicações a do limite possível de controle social institucional (Estado/Igreja) à aquele que quer viver em separado.
A consciência coletiva de uma gente colonizada por uma cultura no processo de sua formação como é o caso do povo brasileiro, denuncia em nosso tempo, os resquícios de uma cultura que 'bambeia' nos limites tênues entre as subjetividades do sujeito que comporta entre tantas dimensões a espiritual/ religiosa, com o dever do estado democrático de direito de assegurar os direitos civis que querem ser construídos em um debate laico.
Os achados desta pesquisa vai ao encontro dos resultados de outras pesquisas sobre a inquisição no Brasil, como é o caso de Anita Waingort Novinsky (2018) que apresenta a dubiedade entre perseguição e não perseguição aos judeus convertidos ao longo do processo colonial brasileiro, bem como Geraldo Pieroni (2000), Ronaldo Vainfas (1995), Luiz Nazario (2005) e Bruno Feitler (2007) que apresentam relações e impactos da Inquisição portuguesa no Brasil. O alcance da hierarquia do Tribunal do Santo Ofício na América portuguesa se deu em condições muito diferente do modo como foi experimentado nas colônias espanholas. Não foi implementado no Brasil uma sede do Tribunal do Santo Ofício, ficando a América portuguesa e outras partes dos domínios portugueses sob a jurisdição do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa.
Por fim, a pesquisa apresenta, a partir das fontes e do processo analisado um elemento pouco discutido na literatura sobre a inquisição no Brasil, a saber, o fluxo do rito processual, que embora rígido, possibilitava aos sujeitos da hierarquia adequações no modus operandi dos processos frente ao desafio de manter as engrenagens da instituição no vasto território sob a jurisdição do Tribunal de Lisboa.