Introdução
Este estudo tem como objeto a prática das parteiras e curiosas da Fundação Serviço Especial de Saúde Pública (FSESP) em Alagoas.
O Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) foi criado em 17 de julho de 1942, durante a 2a Guerra Mundial, devido a um acordo firmado entre o governo dos Estados Unidos da América (EUA) e do Brasil1, tendo como financiadora a fundação Rockfeller2 com o propósito de controlar as doenças endêmicas e epidêmicas e sanear as regiões da Amazônia e do Vale do Rio Doce. Em contrapartida estas regiões eram produtoras de borracha, minério de ferro e mica, matérias primas estratégicas para fins militares3.
Em 1949, a agência do SESP assina seu primeiro contrato com Estados do Nordeste brasileiro, a fim de «organizar serviços de saúde pública em áreas de importância econômica e qualificar pessoal para os departamentos de saúde estaduais»4. Assim, em 1957 o SESP firma um acordo entre o Ministério da Educação e Saúde e a Comissão Vale do Rio São Francisco, favorecendo a expansão das atividades do SESP aos Estados de Alagoas, Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e Sergipe5. Nesse contexto o Brasil adotou o modelo americano dos health centers, baseado em assistência educativa materno-infantil, atendimento de tuberculosos, educação sanitária, análises laboratoriais e formação de profissionais de saúde pública6.
O convênio entre a fundação Rockfeller dos EUA e o Brasil se desfaz em 19607 e com isso, o SESP perde sua autonomia8, deixa de receber auxílio do governo americano, passa a disputar recursos com outras instituições brasileiras, incorporandose ao Ministério da Saúde, transformando-se em Fundação Serviço Especial de Saúde Pública (FSESP)9, consequentemente modificando a sua estrutura e atividades10.
Em 1965, as principais atividades da FSESP foram: o saneamento, especialmente o abastecimento de água; a assistência à gestante e à criança de 0 a 4 anos e o controle das doenças transmissíveis. A Fundação atuou no Brasil até o ano de 1990, quando foi incorporada à Superintendência de Campanhas de Saúde Pública através a da Lei n.° 8.029 de 12 de abril de 1990, e suas atribuições, acervos e recursos foram transferidos para a Fundação Nacional de Saúde11.
O Estado de Alagoas contou com a atuação dos serviços do SESP desde a década de 1950 e posteriormente da FSESP. Nessa época, as poucas enfermeiras existentes no Estado de Alagoas eram professoras da Escola de Auxiliares de Enfermagem de Alagoas, única instituição formal de ensino de enfermagem, ou estavam vinculadas ao Ministério da Saúde, Secretaria do Estado de Saúde ou à própria FSESP.
Aquelas ligadas a FSESP desenvolviam suas atividades majoritariamente nas cidades do interior12, onde tinham contato com as parteiras leigas das comunidades. A partir dessa interação o presente estudo assentou a hipótese de que as práticas de parteiras leigas, ou seja, de mulheres que tinham a confiança da gestante e eram reconhecidas pela comunidade por sua experiência no acompanhamento da mulher durante o parto normal e pós-parto, representam o cuidado primordial que está relacionado com a origem da vida humana. Este cuidado precede os demais e sem ele não seria possível existir13.
Portanto, diante do entendimento de que historicamente o cuidado se configurou como um ato de reciprocidade, onde os envolvidos necessitam de ajuda, seja de forma temporária ou definitiva14. Por outro lado, vale salientar que as pesquisas históricas que se debruçam sobre o SESP e posteriormente, a FSESP dedicam-se a discutir sobre a criação deste serviço no Brasil, seu foco de atuação, sua ação na Região Norte brasileira e as campanhas de saúde, com ênfase para as doenças de interesse epidemiológico da época e para aquelas em decorrência das péssimas condições sanitárias, que mesmo nos dias atuais, ainda se apresenta como um problema crônico no país. Ainda, alguns estudos se dedicam analisar os agentes envolvidos no cuidado, dentre eles as parteiras e curiosas, que tiveram uma enorme contribuição ao ofertar assistência materno-infantil e difundir programas sanitários e de higiene. Partindo da heterogeneidade dos estudos, da necessidade de uma investigação mais aprofundada sobre a atuação das parteiras e curiosas em diferentes regiões do país, especificamente entender como ser deu este processo em Alagoas, que este estudo tem os seguintes objetivos: Descrever o trabalho de recrutamento, treinamento e supervisão das parteiras e curiosas desenvolvido pela Fundação Serviço Especial de Saúde Pública em Alagoas e Analisar o saber e o fazer destas parteiras e curiosas.
Trata-se de um estudo qualitativo, de caráter histórico-social, que consiste na investigação de fatos e/ou eventos passados que podem vir a ter influência no hoje, marcados pelo contexto cultural específico de cada época15. Os estudos de natureza sócio-histórica abarcam investigações dos grupos humanos no seu espaço temporal e preocupa-se em discutir os aspectos do cotidiano das diferentes classes sociais16. Por conseguinte, a proposta de trabalhar com o referencial teórico a partir do pensamento de Marie Françoise Collière surgiu através de sua abordagem sobre a identificação das práticas de cuidado com as mulheres, visto que a teórica estuda e analisa a relação entre a história da prática de enfermagem com a história da mulher que presta cuidados e sua evolução. E com isso, ela aborda que as diferentes práticas de cuidados surgem da identificação dessas práticas com a mulher, com a mulher consagrada e com a mulher enfermeira.
O método de pesquisa histórica contempla uma coleta sistemática de dados, bem como sua avaliação crítica e organização, com o objetivo de analisar e interpretar os achados com vistas à produção de uma síntese17. Já a história social leva em consideração o universo das práticas sociais concretas e o das representações, criações simbólicas, rituais, costumes e atitudes diante da vida e do mundo18. O cenário foi o Estado de Alagoas-Brasil, em um recorte temporal compreendido entre 1960 e 1990, cujo marco inicial se refere ao processo de transformação do SESP em FSESP, e o marco final a transição de FSESP para Fundação Nacional de Saúde.
As fontes primárias deste estudo foram compostas por documentos oficiais (relatórios, legislação, boletins, memorandos) sobre a FSESP no Brasil, documentos arquivados no Laboratório de Documentação e Pesquisa em História da Enfermagem da Universidade Federal de Alagoas, e depoimentos orais resultantes da transcrição das entrevistas das parteiras/ curiosas, de visitadoras sanitárias, de uma enfermeira e de um médico dos tempos da FSESP. Já as fontes secundárias foram compostas por autores que abordam a História de Saúde Pública do Brasil e de Alagoas. Na busca por outras fontes, foi possível ter acesso a livros do SESP e FSESP, álbum seriado e a fotocópia de um livro de curso de parteira cedidos por depoentes.
Os depoimentos foram coletados através de uma entrevista semi-estruturada19 a partir da metodologia da história oral temática, a qual se concretiza pela realização de entrevistas com pessoas que vivenciaram, participaram ou testemunharam um determinado fato/fenômeno20. Sobre a questão do anonimato é imperioso relatar que todos os entrevistados preferiram usar o próprio nome, abrindo mão da preservação de sua identidade nesta pesquisa, o que justifica que todos os trechos utilizados no processo de apresentação e análise dos resultados revelam o nome de quem se pronuncia. Tal fato é bastante significativo para a pesquisa histórica, pois quem fala, assim o faz de um lugar e de uma posição.
Na primeira seção dos resultados faz-se uma descrição do trabalho de recrutamento, treinamento e supervisão das parteiras e curiosas desenvolvido pela Fundação Serviço Especial de Saúde Pública em Alagoas, para, na sequência, analisar o saber e o fazer destas parteiras e curiosas em consonância com o método histórico, triangulando uma discussão entre as fontes primárias, secundárias e com o referencial teórico de Marie Françoise Collière, o qual considera que «o papel [de mulher] é a expressão das práticas de cuidados, elaboradas a partir da fecundidade e moldadas pela herança cultural da "mulher que ajuda"»21.
De um ponto de vista ontológico, o cuidado faz parte de todas as fases da vida, desde o nascimento até a morte, a partir de um processo contínuo de restabelecimento das forças para manutenção da vida22. Dessa maneira, para conservação da vida faz-se necessário um conjunto de atos cuidativos com vistas a reprodução e perpetuação dos seres humanos, cujo destaque neste estudo se revela com a proteção materna instintiva como primeira prática de cuidado humano.
1. A estrutura e organização da Fundação SESP: desvelando o trabalho de recrutamento, supervisão e treinamento das parteiras e curiosas da comunidade
O sistema de saúde brasileiro passou por grandes transformações no decorrer do século XX, as quais foram acompanhadas de mudanças socioeconômicas, culturais e políticas, culminando com o surgimento da saúde pública com bases científicas modernas23. Em 1942, a população do Brasil era de 42.000.000 de habitantes e quase 90% dessa população vivia ao longo do litoral. A sua economia, era baseada sobre a demanda de outros países, através das exportações caracterizadas pela natureza tipicamente rural, agrícola ou mineral. A situação sanitária era precária, a maioria da população servia-se de água de má qualidade e somente tinham facilidades de acesso a serviços de saúde e saneamento quem podia pagar pelos mesmos24.
As doenças no Brasil eram tão difundidas que além de constituir uma séria preocupação social também era uma grande barreira ao seu desenvolvimento econômico. Dentre os riscos de saúde que mais acometiam a população, estava a malária; mais de 40 mil pessoas morriam de tuberculose anualmente; além dessas existiam óbitos por febre tifoide, disenteria e outros tipos de doenças intestinais. As altas taxas de mortalidade infantil demonstravam o estado de subdesenvolvimento de várias regiões do Brasil25.
A distribuição de médicos e enfermeiras também era deficitária. Nesta época, existiam cerca de 600 enfermeiras diplomadas, no entanto, apenas 400 delas estavam ativas em serviço26. Concluindo-se, que:
[...] uma grande proporção de seres humanos da nação, vive uma miserável existência sob circunstâncias indesejáveis. A falta de controle das doenças preveniveis é somente uma parte do grande problema. Suas casas são miseráveis, sua economia é desequilibrada, seus suprimentos de alimentos são precários, seus métodos de desenvolver diariamente suas funções são primitivos, como são suas ferramentas; seu horizonte educacional é limitado e seu trabalho diário é relativamente insuficiente, improdutivo [...]27.
Neste cenário, em 1942 é firmado um acordo político-militar de caráter secreto entre o Brasil e Estados Unidos, sobre saúde e saneamento do Vale Amazônico, objetivando a criação do SESP. Isto porque nesse mesmo ano, durante a 2a Guerra Mundial e diante do contexto de rivalidades, o governo brasileiro procurou tirar vantagens da competição entre as grandes potências buscando negociar com quem lhe fornecesse melhores condições políticas e econômicas28.
Deste modo, no início do século XX, o Brasil mantinha um estreito laço com a Alemanha e isso era motivo de preocupação para os EUA, pois essa aproximação poderia ocasionar a tomada de mercados exportadores. A fim de conter a aproximação da Alemanha com o Brasil, os EUA reforçaram suas estratégias de influência na América Latina29, pois consideravam que ter o apoio do Brasil e colocá-lo contra os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), seria um meio de segurança para o país. O maior interesse dos EUA no Brasil era voltado para matérias-primas típicas do Nordeste brasileiro, como a borracha, minério de ferro, manganês30, insumos estratégicos para fins militares/bélicos31.
Assim, os EUA propuseram uma negociação para que o Brasil rompesse relações com o Eixo, oferecendo um empréstimo de 20 milhões de dólares para pagamento da dívida externa acumulada, fornecimento de armamentos, financiamento da construção de uma usina siderúrgica indispensável ao desenvolvimento industrial e a emancipação econômica brasileira, obtendo êxito32.
Ademais, a 2a Guerra Mundial desencadeia no Brasil uma série de transformações no setor saúde. Há uma nova expansão da saúde pública, para atender aos trabalhadores da extração de materiais estratégicos ao esforço de guerra, que estavam sendo vitimados pela febre amarela e pela malária33.
Com isso, no dia 17 de abril de 1942, o Presidente da República, mediante o Decreto-Lei de n°4.275, autorizou o Ministro da Educação e Saúde a firmar um serviço de cooperação em matéria de saúde pública com o Instituto de Assuntos Interamericanos (IAIA), que se concretizou com a criação do SESP34.
Conforme o Decreto-Lei n° 4.275, o SESP tinha como função:
[...] o saneamento do vale amazônico, especialmente profilaxia e os estudos da malária no vale do Amazonas e a assistência médico-sanitária aos trabalhadores ligados ao desenvolvimento econômico da região; o preparo de profissionais para trabalho na saúde pública, compreendendo aperfeiçoamento de médicos e engenheiros sanitaristas, a formação de enfermeiras de saúde pública e o treinamento de outros técnicos; a colaboração com o Serviço Nacional de Lepra, e por intermédio deste, com as repartições sanitárias estaduais, para o combate da Lepra35.
Nessa fase, foi instalada uma rede de postos e centros de saúde. O pessoal contratado para trabalhar no SESP era treinado conforme a função, submetido a supervisão reiterada e tinha regime de tempo integral36, como podemos ver na fala de uma enfermeira que foi supervisora da regional Alagoas e de uma parteira:
O SESP não pegava ninguém assim avulso não, preparava todo esse pessoal, recrutava, treinava e supervisionava. O SESP pagava um bom salário porque seus funcionários trabalhavam em regime de dedicação exclusiva, eles não podiam ter vínculo com outras instituições37.
A fundação era muito rígida, talvez não seja essa palavra não, era cuidadosa. Primeiro porque quem era funcionário da fundação não podia ter outra atividade extra, você era um funcionário só dedicado a fundação38.
O SESP começa a se expandir em janeiro de 1949 devido a solicitações diretas dos Estados ao Ministério da Educação e Saúde, no sentido de obterem a colaboração do Serviço e da criação dos Planos de Valorização Econômica estabelecidos na Constituição vigente. Em 1950, o SESP é requerido ao Vale do São Francisco e expande suas atividades para os Estados de Alagoas, Pernambuco, Sergipe, Bahia e Minas Gerais. Nos anos posteriores, se instala em outros Estados, configurando um período chamado de «fase de expansão» que perdurou de 1949 a 1959. Assim, em 1954 existiam unidades sanitárias nos seguintes municípios de Alagoas: Pão de Açúcar, Traipú, Porto Real do Colégio, Piassabuçu, Igreja Nova e Penedo39.
No cenário nacional, Juscelino Kubitschek (JK) assume a presidência em 1956 com a intenção de avançar no rumo do desenvolvimento econômico, com apoio no capital público e privado. Ao final de seu governo nota-se um intenso crescimento da inflação, assim como uma forte atuação do movimento sindicalista e estudantil40. No início de 1960, o convênio internacional que mantinha o SESP estava próximo de seu encerramento definitivo e com isso surgiam preocupações a respeito de seu destino. Nesse bojo, surgiu a ideia de transformar o SESP em Fundação SESP, a fim de possibilitar a continuidade e o funcionamento do serviço, como também preservar as características essenciais fundadas na versatilidade, rapidez e autonomia de ação41.
Três meses antes de findar o contrato internacional do Brasil com os Estados Unidos, JK sancionou a Lei n° 3.750, autorizando o Poder Executivo a transformar o SESP em FSESP, a partir de então vinculada ao Ministério da Saúde, com jurisdição em todo território nacional, com sede e foro no Distrito Federal, com o objetivo de «organizar e operar e operar serviços de saúde pública e assistência médico-hospitalar, sistemas de abastecimento d'água e esgotos»42.
Ao se transformar em fundação, o SESP já atuava em todas as unidades da Federação. Em Alagoas o processo de urbanização intensificou-se a partir das décadas de 1950-1960, todavia, na década de 70 a situação da saúde ainda era precária, sobretudo devido as altas taxas de mortalidade infantil43.
Portanto, A FSESP desenvolveu no Brasil o modelo de saúde médico-sanitário norte-americano44. Nos Centros e Postos de Saúde os serviços compreendiam a prevenção de futuros problemas, medidas de vigilância epidemiológica, educação e fiscalização sanitária, com prioridade para as seguintes ações: controle de doenças epidêmicas ou endêmicas, como a tuberculose e hanseníase, e atenção à saúde materno-infantil45. Cada Posto de Higiene desenvolvia ações de saúde pública, assistência médica e de laboratório, com uma equipe composta por no mínimo 01 médico, 01 secretário-caixa, 01 auxiliar de escritório, 02 visitadoras sanitárias, 01 guarda-sanitário, 01 laboratorista, 01 jardineiro e 01 servente46.
As mulheres durante o período da gravidez e as crianças mereciam atenção especial, pois representavam mais de 70% da população do País, além dos elevados coeficientes de natalidade e de mortalidade infantil e por obter 68% do total de óbitos ocorridos no Brasil por doenças consideradas evitáveis, como diarreia, doenças respiratórias, tétano, desnutrição, entre outras47. Destarte, era necessário promover a intensificação das ações de proteção do grupo materno-infantil, responsabilizando os médicos e as enfermeiras pela realização das consultas de prénatal e as visitadoras sanitárias pelas atividades educativas48.
Já com relação ao parto, a assistência prestada se dava pelas curiosas, no âmbito domiciliar. A FSESP preocupava-se em manter uma estreita aproximação com as parteiras e curiosas que exerciam suas atividades na comunidade, valorizando seu potencial, como evidenciamos no seguinte relato:
A primeira impressão quando você chega em uma região, é você condenar o trabalho da curiosa. A FSESP usou outra estratégia, não condenava essas curiosas, e sim descobria essas curiosas. Porque naquela época a mortalidade materna era alta, também era alto o índice de crianças com tétano neonatal. Então o SESP quando chegava numa região ele não condenava as curiosas, ele descobria as curiosas. Trazia essas curiosas para dentro da fundação49.
Sabendo dos problemas de saúde que acometiam a população materno-infantil, a FSESP organizava um sistema de treinamento permanente, ofertando noções mínimas, a fim de preparar as curiosas para assistir aos partos da melhor forma possível, sem causar danos às gestantes e aos filhos50.
A gente descobriu quantas parteiras tinham no povoado e nos arredores também, que moravam em outras comunidades. A gente fez uma pesquisa para descobrir quantas parteiras tinham, que eram muitos partos domiciliares que elas faziam. Aí começamos a chamar para fazer o curso e elas aceitaram. Eu não lembro se era quinzenalmente ou mensalmente, a gente fazia essas reuniões com elas mostrando a importância de fazer um parto correto, da higiene e a gente dava o material mensal, material esterilizado e tudo. Foi uma boa frequência51. Elas vinham periodicamente e recebiam palestras de enfermeiras e de médicos. Havia uma interação muito grande e elas também eram fonte de informação52.
O curso tinha duração de quatro ou seis meses e envolvia diversos assuntos, tais como:
[...] o papel da parteira e a importância do seu trabalho, noções de higiene individual, o valor do exame médico às gestantes desde o primeiro mês, importância da alimentação adequada para a gestante e o feto, sinais e sintomas principais da gravidez, imunizações pelo anatox-tetânico, a colaboração da curiosa no encaminhamento das gestantes, complicações da gravidez, primeiros sinais de trabalho de parto, primeiros cuidados ao recém-nascido, cuidados às puérperas, a bolsa da curiosa53.
Tais treinamentos e cursos foram relatados pelas entrevistadas:
Porque fizemos o curso! Fizemos o curso aqui mesmo. Nós nos tornamos parteiras pelo seguinte, porque várias vezes a gente ficava sempre com os médicos, quando era parturiente do primeiro parto, a nulípara, a gente ficava sempre com o médico, para qualquer coisa aspirar a criança quando nascia, fazer tudo o que precisava. Ele só fazia cortar o cordão umbilical, a gente era quem fazia o curativo, amarrava tudo. E era assim54. Estudava tudo sobre útero, para poder saber fazer a curagem. Aí ele me ensinou a fazer, como colocar a mão, como ir até lá dentro, como fazer lá. Foi tudo muito especial, viu?55 Era para aprender como fazia a ausculta fetal, a episiotomia, tudo. A gente aprendia56.
Quando a parteira/curiosa atingia certo limite de instrução e estava apta para partejar, passava a receber supervisão sistemática das visitadoras sanitárias ou das enfermeiras. A supervisão era feita após cada parto para verificar e substituir o material da bolsa, registrar o nascimento, renovar as instruções e agendar a visita domiciliar da puérpera.
Aí ela [visitadora sanitária] disse "então agora, a senhora vai ter que pegar os materiais e trazer os dados para cá"57. A gente monitorava as parteiras, com palestras, fornecimento de material para as bolsas. Tinha uma reunião todos os meses, elas tinham que vir aqui na unidade para a gente ver a questão das bolsas e fazer minicursos58.
Elas eram cadastradas na unidade e regularmente elas iam a unidade para ter contato com a enfermeira e visitadora, para receberem orientações, saber como deve ser feito, pegar o material e levarem os pacotes esterilizados59.
Nessa época muitas parteiras já trabalhavam no hospital, e nesses casos, o próprio serviço já fornecia todos os materiais necessários para o parto. Quando estas necessitavam realizar um parto no domicílio, elas pegavam os materiais no hospital, realizavam o parto no domicílio e ao fim, levava-os de volta para o hospital para que fossem limpos e esterilizados.
Diante do exposto, fica evidente a preocupação da FSESP em recrutar, treinar e supervisionar as parteiras e curiosas da região de origem, formando uma aliança e aproveitando todo o seu potencial para que os cuidados prestados as parturientes e aos recém-nascidos fossem da melhor qualidade, tendo em vista que a parcela da população de crianças e gestantes era de grande atenção para a fundação.
2. O saber e o fazer das parteiras e curiosas: uma análise a luz de Collière
Considerando que o objetivo desta seção é analisar o saber e fazer das parteiras e curiosas em Alagoas que atuaram junto à FSESP, a partir do referencial teórico de Collière, optou-se por apresentar um quadro de apresentação destas mulheres, que são as protagonistas desta história.
As parteiras detinham um saber empírico e assistiam as mulheres no domicílio durante a gestação, parto, puerpério, como também nos cuidados com os recém-nascidos. Recebiam da comunidade diversas denominações, alguns chamavam de «parteira leiga», outros de «comadre»60, «mãe de umbigo», ou de «curiosa»61.
A prática do cuidado não pertencia a um ofício ou a uma profissão, ela estava relacionada a qualquer pessoa que ajudasse outra a garantir o que era necessário para continuar a sua vida62. Portanto, desde os primórdios até a atualidade, o cuidado inerente a todos os seres vivos e deve ser sustentando pelo fornecimento de energia, abrigo, alimento e proteção63. Ademais, fazia-se necessário a atividade de educação em saúde realizada pela parteira e curiosa, que tinha o objetivo de orientar a gestante a procurar uma maternidade ou hospital para dar à luz, assim como de auxiliá-la a adquirir confiança e proporcionar um conforto afetivo à mulher em trabalho de parto64, conforme relatam:
Sempre conversei com as parturientes, principalmente com as primigestas. Para mim era sempre um aprendizado, mais ainda!65
Quando [a gestante] chegava a gente recebia, examinava, a gente conversava com ela. Eu sei que é difícil, principalmente quando era nulípara, e eu dizia: 'confie em mim, eu vou ajudar você!66'.
A gente conversava, para ela se acalmar, para ela se sentir mais tranquila. Porque a parturiente tranquila ajuda a pessoa que está fazendo o parto. E quando as contrações são muito fortes, a mulher sente muita dor, até multípara mesmo. Tem que fazer um jeito de suportar aquilo67.
Eu conversava, falava o seguinte 'olhe, ser mãe é difícil, mas é gratificante quando você está com o seu filho nos braços. Sofrer a dor do parto é humano minha filha, toda mulher, toda fêmea que pare, ela sente a dor do parto. E o que você sentir, você fale para mim porque aí eu vou estar por dentro do seu caso68'. Conversava! Animava, não é?! Tem que animar a paciente. A bichinha com dor e a gente fazia aquela palestra com elas, animava. Pronto! Aí elas relaxavam!69.
Você é a peça fundamental da história! Eu ainda acho que o papel da parteira é mais do que o do médico, porque ela quem vai conduzir. Conversar, tentar deixar de uma forma que ela tenha um parto tranquilo e não venha a se apavorar70.
Ter o apoio dessas mulheres era importante, pois a manutenção do equilíbrio emocional durante o trabalho de parto é fundamental para diminuir o nível de estresse e ansiedade. Segundo Collière, essas conversas representam um saber existente, tendo em vista as diferentes experiências passadas pelas parteiras e curiosas nos seus próprios corpos, as quais modificam-se conforme as diferentes etapas da vida. Assim, as parteiras e curiosas faziam ações de educação em saúde segundo conhecimentos adquiridos em experiências passadas71, ou seja, a partir de práticas e modos de vida construídos com base no que aprendiam e como utilizavam o ambiente que as cercava, podendo gerar rituais e crenças por longo tempo72.
Existiam dois cenários onde se realizavam os partos: o domicílio e o hospital. Quando realizado em casa, a gestante paria na cama e os materiais utilizados eram do hospital ou da própria curiosa. Sobre este aspecto Collière afirma que:
[...] os cuidados de enfermagem procedem de um encontro entre dois (ou mais) seres vivos em que cada um detém elementos do processo de cuidados. Este processo situa-se na encruzilhada de um sistema de trocas, [...] visando encontrar a sua forma de realização a partir das capacidades e recursos de cada um, num dado ambiente (domicílio, local de trabalho, instituição hospitalar ou extra-hospitalar)73.
No cenário deste estudo, todas as informações do parto, da parturiente e do recém-nascido eram levadas para o hospital ou para os postos, para que a enfermeira e/ou visitadora sanitária pudesse realizar a visita na residência da puérpera. Fica evidente o cuidado com a parturiente, com os sentimentos, sensações e emoções, e com toda dinâmica do trabalho de parto.
Quando eu tinha certeza que estava em início de trabalho de parto, eu orientava, explicava o que é que ela deveria fazer e o que ela não podia fazer, explicava que quando ela sentisse as contrações 3 por 10 ou 3 por 30 minutos, então ela poderia vir para maternidade porque estava em trabalho de parto, ou então quando ela perdesse o tampão mucoso com raios de sangue. Aí elas perguntavam: 'e o que é isso? ' e eu dizia 'é um catarro grosso que você pega ele nos dois dedos e ele não solta, quando ele estiver assim com raios de sangue então você pode vir para maternidade que você será bem recebida, e se você quiser ter seu bebê aqui na maternidade a gente fica com você, se não tiver condições de ter o bebê aqui a gente transfere e lhe acompanha para onde for mais indicado74'.
Para Collière75, as orientações dos cuidados nascem da ciência da natureza, a qual é definida por meio de descobertas progressivas, a partir de tentativas, sejam elas de erros ou acertos, favorecendo a aquisição do «saber fazer» e desenvolvendo práticas de cuidados, as quais giram em torno de tudo o que permite a sobrevivência76, como mostram Maria José e Elizabete:
A gestante é uma pessoa fácil e ao mesmo tempo difícil de você lidar. Porque é uma pessoa que não é doente, não é? Não se faz uma parteira com seis meses, nem com 1 ano ou 2. Porque o parto é uma coisa muito delicada! Cada dia que você faz, você aprende! Se você tiver 10 filhos, cada um é diferente um do outro77.
Mas não foi ninguém que me ensinou, o dom quem me deu foi Deus, que eu nunca nem vi! Hoje é tudo moderno, mas antigamente, eu cortava com tesoura mesmo. Mas eu botava água no fogo para esquentar, como a minha mãe já dizia78.
Faz-se necessário compreender que as formas de viver modelam os hábitos de vida, que quando são bem aceitos em um grupo acabam por serem estabelecidos em crenças e essas por sua vez estão repletas de valores. O cuidado prestado pelas parteiras e curiosas passavam pelo sentir do corpo. Elas tinham grande sensibilidade e o «utensílio» mais utilizado para auxiliar o parto eram suas próprias mãos. Com as mãos elas descobriam, sentiam, palpavam. Além disso, detinham uma observação muito acurada, devido a experiência, de maneira que sabiam imediatamente quando o parto poderia ser auxiliado por elas ou quando não lhe cabia mais essa assistência.
A gente botava a mão assim e via o fundo do útero, fazia aquela manobra assim, no fundo do útero, e ele se soltava79. Todo parto eu fazia! Só não fazia transverso porque não podia! O que não tivesse ao nosso alcance a gente chamava o médico80.
Porque quando a gente toca, a gente sente se o útero é um útero que dilata bem, ou se é um útero difícil de dilatação. Por que existe isso, quando a gente toca que sente aquele útero muito duro, aí a gente já sabe que vai ter dificuldade81.
A maneira como as curiosas aprenderam a auxiliar o parto se deu com a observação do exercício de outras curiosas e parteiras ou até mesmo dos médicos. Isso é definido por Collière como saberes que foram transmitidos através de gestos. Já as parteiras, que recebiam treinamentos, primeiramente aprendiam a teoria para em seguida desenvolverem a parte
prática, ou seja, aprendiam os saberes e as práticas de cuidados não só pelos gestos, mas também pelas palavras82.
Já era pegar na massa! Não tinha nada teórico não, era na prática! Eu [aprendi] vendo! Vendo médico fazer. Eu dizia para minha colega: "Você ainda teve o privilégio dele lhe ensinar, porque a mim, ninguém nunca ensinou. Eu aprendi vendo!" Aprendi assim, vendo e tendo que fazer!83. Eu aprendi a auxiliar a gestante a partir do momento que eu entrei aqui, porque até então eu sabia pegar o menino, mas auxiliar eu não tinha noção, aí do primeiro plantão em diante eu comecei ganhando noção, como é que eu poderia agir, o que eu podia ou não fazer, então fui tomando pé da situação e tomando gosto e hoje se me tirar da maternidade eu me sinto um peixe fora d'água84.
Tinha a parte teórica e a parte prática, a gente estudava assim desde o início, como você vai receber a gestante, observar os sinais no parto, que sinais eram esses e a gente vinha estudando, primeiro aquele muco, para poder você ver se estava realmente em trabalho de parto, tudo isso a gente tinha primeiro que fazer um estudo com a teoria, e depois a prática85.
Após o parto, essas parteiras realizavam alguns cuidados, tanto com a mãe, agora chamada puérpera, como com o recém-nascido. Com a puérpera, elas tinham o cuidado com a placenta, com o sangramento, com a episiotomia e episiorrafia, com a higiene e alimentação. Todos estes cuidados surgem do conhecimento do seu próprio corpo, da experiência da fecundação, do parto e do nascimento, pois é através do corpo que se comunicam os cuidados. Não tem como cuidar sem antes ter experimentado alguma experiência de cuidado86.
A placenta é só fazer uma massagem no fundo do útero, ele contrai, aí faz pressão para baixo, aí a placenta saía normalmente. Quando não saía, é a curagem. Você coloca sua mão na direção do cordão, vai até a placenta lá dentro. Pronto, você encontra a placenta, aí faz o manejo e puxa devagarinho para evitar de romper ou de deixar algum pedaço lá dentro.
Porque a placenta tem cotilédones e às vezes eles se soltam e fica sangrando. Qualquer pedacinho que fique dentro do útero é um corpo estranho. Enquanto não tirar, não para de sangrar87.
Mais uma vez, o cuidado das «mulheres que ajudam» é voltado para a manutenção da vida, visualizado a partir de da realização manual de uma técnica aprendida pela transmissão de saberes e pela experiência adquirida ao longo da vida.
Partindo do pressuposto que o cuidado é essencial Collière define o como uma atitude para «conservar a vida, assegurando a satisfação de um conjunto de necessidades indispensáveis à vida, mas diversificadas nas suas manifestações»88.
Outra prática observada nessa direção era o método utilizado para conter a hemorragia pós-parto causada por atonia ou hipotonia uterina, qual seja, a administração de 10 UI de ocitocina por via intramuscular no músculo deltoide objetivando a estimulação da contração das fibras uterinas89. Nos partos realizados, tanto no hospital quanto em casa, algumas curiosas e parteiras relataram essa prática, utilizando a medicação da época, o metergin.
Geralmente os cirurgiões, eles usavam metergin. Na época eles usavam metergin. Mas hoje não se usa mais, hoje se trabalha com ocitocina90.
De rotina o médico já passava. Qualquer pessoa que desse à luz, tomava o metergin, na época. Injetável. Intra muscular!91
Em algumas situações era necessário realizar a episiotomia, uma incisão cirúrgica vulvo-perineal que objetiva impedir ou reduzir o trauma dos tecidos do canal do parto, favorecendo liberação do feto92, cujo corte pode ser mediano, lateral e médio-lateral93. Em sua maioria, as parteiras e curiosas realizavam o corte médio-lateral e para reparar realizavam a episiorrafia, através de uma sutura que se inicia na mucosa vaginal pelo ângulo superior da ferida com pontos contínuos ancorados, e, em seguida, sutura dos músculos e da pele do períneo com pontos separados94.
Teve uma mãe que chegou com o filho com o pé de fora e ainda disse "não mate meu filho!". Que responsabilidade, não é? E graças a Deus eu abri a episiotomia e fiz o parto dela!95. É um corte pequeno que a cabeça do neném vai aumentar quando passar. E sabe por que também? Se deixar assim a vontade, pode o menino passar, forçar e abrir até o reto. Assim, a episiotomia ajuda, facilita. Depois eu dou uns pontinhos!96.
Quanto à higiene, a parteira/curiosa ensinava a puérpera sobre o banho, higienização da região íntima, troca do «calço» (pano utilizado como absorvente) e cuidados com os pontos, caso existisse. Para Collière «os cuidados ao corpo abrangem, igualmente, tudo o que concorre para o proteger e manter um ambiente são»97.
Ajeitava a mãe, já botava lá no cantinho da cama, forrava outro lençol, botava o pano, botava o calço98. A gente orientava sobre o banho, a troca da roupa, os calços. A gente orientava que não podia ficar muito tempo, que ela podia ter uma infecção. O cuidado de quem tinha pontos para lavar bem lavado. A gente dava um vidrinho com mercúrio, ou mertiolate ou povidini. E dizia: "peça uma pessoa para colocar", porque não podia nos primeiros dias está se abaixando, pegando em peso99.
Para recompor as forças e energias da mulher gastas durante o trabalho de parto, preocupava-se também com a sua alimentação. O alimento era preparado pelas matriarcas da casa, ou até pelas próprias parteiras, e se constituía como patrimônio do saber. Algumas tradições eram mantidas de maneira que as práticas eram transmitidas de geração em geração, como conta Maria José:
A puérpera ficava deitadinha lá! Só comendo o pirão! Pirão de mulher parida! Fazia um pirão mesmo, arrochado! Aqui no interior, até hoje, as minhas meninas quando vão ganhar neném comem o pirão. Minha mãe já acostumou desde a minha avó, minha bisavó. E hoje eu faço do mesmo jeito!100.
As puérperas tinham que manter um repouso de 40 dias após o parto, chamado de resguardo. Neste tempo elas não podiam fazer nenhum esforço, não podia ter relação sexual e sua única obrigação era cuidar do bebê com ajuda de outra pessoa. Era uma prática passada de mãe para filha, que segundo Collière trata-se da mulher que já vivenciou determinado fenômeno e transmite o seu saber, revelando um saber-fazer adquirido pela experiência101.
Quando eu tinha os meus filhos, eu passava oito dias e não fazia nada, só comendo e dormindo, comendo pirão e dormindo, não fazia nada, porque minha mãe fazia tudo! E hoje eu faço a mesma coisa com as minhas filhas. Olhe, a mulher que ganha neném, ela só está com o corpo fechado depois de 40 dias!102.
Quando os partos eram realizados em casa, era necessário pesar o bebê, medir e registrar todas as informações em uma ficha ou em um papel para que fossem levados aos postos de saúde. No entanto, quando não tinham balança para pesar, elas se utilizavam de seus saberes empíricos, ou seja, nascidos da experiência com seus filhos, que segundo Collière retrata mais uma vez as «habilidades para observar, para aprender a partir das situações» vivenciadas103.
Já com o recém-nascido, o cuidado era em relação ao coto umbilical, higiene, alimentação, verificação de medidas antropométricas, profilaxia da oftalmia gonocócica, aplicação vitamina K e vacinas. Todos estes cuidados fazem parte de dois pensamentos de Collière, primeiro o de manutenção da vida, pois todo ser humano necessita de cuidados para sobreviver; e segundo a algo que ela chama de «práticas do corpo», quando «é a partir do seu corpo que a mulher presta cuidados ao recém-nascido, a criança e depois será levada a prestá-los a outras mulheres»104.
Quando precisava, eu cortava o umbigo, amarrava direitinho e colocava o pano por cima. Hoje é um álcool que coloca, mas antigamente nós colocávamos era óleo, era azeite de mamona105.
Naquela época a gente botava umas ligaduras que a gente cortava de elástico, esterilizava e botava. Aí no outro dia a gente dava banho normalmente, colocava álcool. Teve uma época que a gente colocava povidine, mas depois passou a álcool, porque com o álcool ele caía mais rápido. Dois a três dias caía o umbigo! 106.
Logo que nascia, a gente limpava, tirava só o excesso de sangue, as vezes eles vinham muito branquinho com aquele verniz, aí a gente não lavava, que eles diziam que aquele material protegia a pele107.
Assim que nascia limpava logo, limpava os ouvidinhos, tudo direitinho, a cabeça, enrolava direitinho, pesava, media, botava argirol nos olhos. Quando era menina a gente botava nos olhos e na vagina. Hoje eu não sei mais o que usa108. A gente colocava o argirol no olho, uma gotinha em cada olho, e se fosse menina, na vagina, e fazia vitamina C. Kanakion na perninha, e o banho109.
Aí a gente ensinava a mãe dar banho, ensinava tudo. O primeiro banho era a gente quem ensinava, quer dizer, quando era o primeiro filho, não é?110.
Amamentação! Tinha que mamar! Quando saía de dentro da barriga! A gente já dava o peitinho, para mamar, para sugar, que era para estimular, não é?111.
Por fim, cabe destacar o valor social dessas mulheres. Todas as parteiras e curiosas são «reconhecidas pela experiência construída no seu corpo e assumida no decurso da sua vida», pois os cuidados exercidos por elas representam um conjunto de respostas as necessidades de sobrevivência, exprimindo assim uma forma de relação com o mundo112. Logo, as parteiras e curiosas eram mulheres que ajudavam, mulheres que estavam preocupadas com a vida do outro e utilizavam seus saberes empíricos, em prol da manutenção e continuidade da vida em sua comunidade. São mulheres que aproveitaram a vivência, a experiência e os saberes adquiridos ao longo da vida, para exercer uma função que lhes conferiu reconhecimento social pela qualidade do cuidado que era oferecido.
Conclusão
Diante do exposto, foi possível compreender que a FSESP foi um importante órgão para a Saúde Pública no Brasil, devido a sua rigorosidade e compromisso com a sociedade, com destaque para o trabalho de recrutamento, treinamento e supervisão de parteiras e curiosas atuantes nos municípios de Alagoas.
Analisar os saberes e fazeres de parteiras e curiosas sob a óptica de Marie Françoise Collière contribuiu para o entendimento das práticas de cuidados realizadas por mulheres de virtude, marcadas por suas vivências e experiências. De acordo com os achados, concluiu-se que o trabalho de recrutamento das parteiras e curiosas, desenvolvido pelas visitadoras sanitárias, assim como o de treinamento, que também contou com as orientações e ensinamentos das enfermeiras e médicos, foi essencial para a valorização das mulheres que cuidavam, assim como para o aperfeiçoamento das práticas, respeitando-as mediantes seus saberes e fazeres, assegurando a continuidade da vida das gestantes e dos recém-nascidos cuidados.
Diante do exposto, a hipótese de pesquisa foi confirmada, pois a atuação das parteiras/curiosas recrutadas pela Fundação SESP evidenciou a implementação de um cuidado para manutenção da vida. Nesse ínterim, cabe ressaltar que a evolução científica, paradoxalmente, concorreu para um aprofundamento da lacuna entre os cuidados cotidianos, no presente estudo revelado pelo cuidado instintivo materno, e os cuidados centrados na doença. Estes últimos, muitas vezes, negligenciam a autonomia e o conhecimento do ser cuidado.
Ainda assim, recomenda-se a realização de outros estudos sobre a enfermagem na área da saúde da mulher, com vistas a compreender como se deu o processo de reatualização de um habitus, a partir da transição de um cuidado empírico prestado por parteiras e curiosas para um fazer cientificamente embasado.