Introdução
Este artigo tematiza as percepções do espaço e do movimento por crianças. Parte de uma experiência de diálogo filosófico com crianças entre três e cinco anos de um jardim de infância em Lisboa, Portugal, realizada entre os meses de junho e julho de 2017. Busca refletir, a partir do relato da experiência vivida entre adultos e alunos de uma das turmas, como estabelecemos relações de diálogo com as crianças em situações de pesquisa acadêmica. A experiência de pesquisa reúne ciências humanas e ciências exatas, expressadas na pedagogia, na arquitetura e nos transportes. Ao propor a pesquisa com crianças entre três e cinco anos, pretende-se estudar a influência do ambiente escolar e de algumas experiências familiares na constituição de hábitos e na mudança de comportamento a partir de uma idade jovem, a fim de sustentar práticas educativas que fortaleçam a autonomia e o bem-estar nos espaços públicos e compartilhados.
A mobilidade ativa, por meio da caminhada e da autonomia daí constituída, confere à criança habilidades de atenção ao meio em que está inserida, aumentando assim a capacidade estratégica de resiliência e resolução de riscos (Babb, Olaru, Curtis, & Robertson, 2016), além de indicar maiores possibilidades de terem uma vida ativa e sociável (Mackett, Brown, Gong, Kitazawa, & Paskins, 2007). A falta de autonomia, no que se refere à mobilidade, está frequentemente relacionada às preocupações sobre segurança por parte dos pais e é diretamente influenciada pelas distâncias entre casa e escola que, em conjunto com a situação socioeconómica da família, acaba por determinar o meio de deslocamento utilizado nestes trajetos. Assim, pretendeu-se entender como o encontro entre a prática do movimento/mobilidade e da filosofia pode existir numa proposta inserida no ambiente escolar - neste caso um jardim de infância - e qual o impacto que poderá haver no diálogo e na percepção das crianças.
A reunião entre a mobilidade e a filosofia surge como encontro potencial de duas áreas do conhecimento que percebem o deslocamento desde distintas perspectivas, para pensar a partir do diálogo, contribuições e ampliação do debate em torno da mobilidade urbana. Algumas iniciativas têm proposto a mobilidade ativa - sobretudo a pé e de bicicleta - no deslocamento entre casa e escola - Pédibus1, Carona a pé2, Bicicletas Escolares FNDE3 - ou inserida no programa e currículo escolar das escolas de educação infantil - Apé-estudos em mobilidade4. Assim como na área da filosofia e da educação têm sido realizadas rodas de Filosofia com crianças a partir dos três anos de idade, fomentando a introdução destes momentos no contexto escolar de modo a que não se torne uma prática exterior à existência e periférica à educação institucional (Brenifier, 2007). O diálogo e a reciprocidade, elementos muito presentes nessas práticas, são essenciais para os processos de aprendizado e de desenvolvimento interpessoal (Torstenson-Ed, 2007).
A proposta de experiência de pesquisa buscou escutar as percepções das crianças a partir da necessidade em pensar sobre como se estabelece uma relação de escuta com crianças pequenas, partindo da proposta da Filosofia com crianças como recurso metodológico para estabelecer o diálogo. A interlocução com a Filosofia com crianças é assumida inicialmente como possibilidade metodológica de escuta das crianças pequenas e como forma de contribuição para os estudos sobre a mobilidade urbana. Esta prática não implica ensinar filosofia nem mesmo a história da filosofia e seus pensadores, mas sim proporcionar o encontro com sua nascente: pensar, refletir sobre algo.
Assume-se, de acordo com Kohan & Olarieta (2012), que filosofar é aprender a dialogar e, por isso, é fala e escuta. Por meio do diálogo com as crianças, foi buscado o encontro com as narrativas da infância, a fim de compor coletivamente as percepções sobre estar nos lugares onde as crianças brincam, habitam e pelos quais se deslocam.
Na Filosofia com crianças encontrou-se o movimento que permite perceber que as crianças têm voz, pensam e são capazes de demonstrar sua potência de pensamento. Inspirando-se nas práticas de Filosofia com crianças do Núcleo de Filosofias e Infâncias [NEFI]5, elaborou-se uma proposta de encontro com as crianças que subsidia esse texto. Destaca-se da proposta do NEFI a sustentação na igual capacidade de pensar em todos os momentos da vida, centradas em temas elaborados/gerados com as crianças e estabelecendo condições para que todos possam falar e escutar, garantindo assim a construção de lugares seguros para o diálogo. O lugar seguro6 é onde todos podem pensar filosoficamente em iguais condições de fala e de escuta, isto é, filosofar. É um lugar sem um julgamento sobre o que se pensa, estabelecido como um tempo e espaço gerado também para escutar-se e pensar-se a partir do que pensa. Filosofar, nessa chave, significa estar atento às palavras e aos sentidos aprendidos com elas e sobre elas, considerando duas dimensões: o que se diz e o que o outro diz; como as coisas afetam o indivíduo e a todos. Estar atento ao que se diz e como se diz, ao que o outro diz e como diz. Quando se coloca em situação de diálogo, como um exercício de atenção ao que se escuta e ao que se fala, as ideias que cada um coloca, há a possibilidade de pensar junto, com outras palavras, outros sentidos (Gomes, 2017). Essa pode ser uma dimensão do trabalho educativo que a Filosofia com crianças propõe. O lugar seguro significa, portanto, que perguntar, duvidar, concordar e negar são possibilidades para dialogar sobre uma ideia. Pensar é um fazer; por isso, na roda de Filosofia com crianças, não há um pensamento certo ou errado. Há o pensar. Um exercício de pensar a vida coletiva, o eu e o outro no e com o mundo.
A prática do diálogo na Filosofia com crianças é fomentada a partir da geração de tempos e espaços em que os participantes conversam entre si a partir de ideias e questões compartilhadas pelo grupo. A prática possibilita que as crianças experimentem a verticalização de problemas. Para gerar o diálogo é comum que o mediador faça intervenções que mobilizem a ampliação da argumentação/fala, como: "por quê?" "o que vocês acham do que o colega disse?", "todos concordam sobre isso?", "alguém tem algo para dizer sobre isso?", "o que vocês pensam sobre isso?" "porque você pensou isso?", "me explique mais", "você pode explicar outra vez?".
Com isso, espera-se que as crianças possam se aproximar com outros modos de perceber e elaborar suas vivências e experiências mundanas (Arendt, 2010), e complexificar sua relação reflexiva com o viver em comunidade, no mundo e com o mundo. Por isso a filosofia é entendida como uma possibilidade educativa que atravessa todas as áreas do conhecimento. Aprender a prática de filosofar é aprender uma dimensão transversal de pluralizar repertórios das crianças e dos adultos. Por não se tratar de um conteúdo a ser ensinado, mas de uma relação com o pensar, as práticas de Filosofia com crianças podem ser situadas na esteira das práticas de cuidado de si (Hadot, 2014; 2016), pois dizem respeito a pensar sobre o modo como nos colocamos no mundo e como se estabelece essa relação. Na Filosofia com crianças gerada pelo NEFI, isso se estabelece a partir de "experimentar o pensar, pensar a experiência".
Esses momentos buscam favorecer a vivência do pensar e a participação ativa. Para isso, procurou-se enfatizar os seguintes aspectos da vivência do filosofar: 1) criação de um ambiente agradável, um clima que inspire a confiança dos participantes e a vontade de fazer parte desta experiência; 2) integração da dimensão afetiva e intelectual dos participantes; 3) postura filosófica que leve mais ao questionamento do que à certeza (Kohan, 2014, p. 22). Esses aspectos nortearam as experiências de diálogo filosófico com crianças sobre as percepções do espaço e do movimento, cujo método e resultados serão apresentados nas seções a seguir. Por fim, na seção de discussão são trazidas algumas considerações relacionadas às principais conclusões, às limitações e aos próximos passos desta pesquisa.
Método
A experiência de Filosofia com crianças a que esse texto se refere foi composta por onze encontros com quatro turmas do Jardim de Infância da Associação do Pessoal do Instituto Superior Técnico [APIST], em julho de 2017 em Lisboa, Portugal: uma turma com um grupo multietário de crianças - três a cinco anos - e nas demais com crianças da mesma idade - três, quatro e cinco anos de idade. Os encontros ocorreram na sala de referência de cada grupo com suas professoras. Nos encontros, com duração aproximada de 30 minutos, buscou-se trazer discussões a partir de temas relacionados à mobilidade e permanência no espaço público, como, por exemplo, os deslocamentos de casa à escola, as brincadeiras no jardim e as saídas a espaços abertos, cujo desenvolvimento e encerramento foi protagonizado pelas crianças. Os registros dos encontros foram feitos, quando autorizados pelas famílias, a partir de gravação em forma de áudio, vídeo e fotos com as crianças. Na finalização dos encontros, foi enviado um questionário para as famílias, a fim de avaliar a relevância das práticas de Filosofia com crianças na percepção das práticas cotidianas de mobilidade e permanência no espaço público.
Os encontros estruturaram-se a partir da apresentação da proposta às crianças e da apresentação de cada pessoa presente na roda, passando uma bola de tênis, que indicava quem estava com a palavra em cada momento. Este objeto e o processo de passar de um para outro focava o momento de transferência da fala durante o diálogo e a atenção à troca de ideias enquanto as crianças se relacionam entre elas.
Buscou-se que as discussões com as crianças fossem abertas, desencadeadas a partir de uma questão ou intencionalidade que perseguisse as questões ligadas ao espaço e ao território, com o intuito de focalizar temas que as crianças traziam e que eram de interesse deste estudo. Entretanto, as discussões não eram restritas a essas questões e havia proposição por parte das crianças. Entre os encontros, algumas questões eram destacadas e relançadas no início do encontro seguinte, a fim de buscar um fio condutor entre as discussões a partir das questões que haviam sido colocadas. Também no começo de cada encontro eram discutidos os pedidos de autorização para gravar os encontros. Nos questionários para as famílias, foram questionados os principais meios de transporte utilizados cotidianamente e também no transporte da criança à escola7. Também foi pedido que as famílias indicassem o grau de concordância com frases que buscaram retratar a percepção sobre situações que envolvem o uso do carro e o andar a pé8. Também buscou-se saber no questionário o número de filhos, a idade do filho mais velho, o código postal da residência e os comentários, impressões ou sugestões relacionados às atividades desenvolvidas no jardim de infância. Foi possibilitado aos familiares preencher os questionários tanto em formato físico - papel - quanto em formato eletrónico - formulário online.
As práticas junto às crianças e os questionários às famílias possibilitaram portanto que fossem gerados dados a partir de duas fontes principais: a transcrição dos diálogos de cada encontro com as crianças e as informações fornecidas pelas famílias. Neste estudo, é destacada a experiência em uma das turmas do Jardim de Infância da APIST em que houve maior adesão das práticas propostas pelas crianças e seus familiares - 16 crianças e 12 familiares.
Uma vez reunidos, os dados das percepções de crianças e seus pais permitiram fazer análises que se referem à influência de diversos fatores individuais na construção dos temas abordados nos encontros de Filosofia com crianças: gênero, ser filho único ou ter irmãos mais novos/velhos, a distância da casa à escola, os modos de deslocamento utilizados pelas famílias e pela criança na ida à escola e a percepção sobre situações que envolvem o uso do carro e o andar a pé. A distância da casa à escola foi medida por meio de geocodificação, considerando a distância a pé ao longo da rede viária - não em linha reta. Por fim, a transcrição dos diálogos permitiu com que as falas das crianças fossem associadas a oito temas: brincadeira, espaços/condições, movimento, pensamento, regra, relação eu-outro, família e medo. A reunião dos temas das transcrições e das informações fornecidas pelas famílias num mesmo banco de dados permitiu a realização de análises cruzadas sobre a experiência de Filosofia com crianças aqui descrita, e que são apresentadas na seção a seguir.
Resultados
Nesta seção, são apresentados os resultados das sessões de diálogo filosófico com um grupo de crianças de quatro anos de idade, em que foi possível cruzar as análises das falas de crianças com as respostas de suas famílias sobre os usos e as percepções dos hábitos de mobilidade urbana. Esta seção está subdividida em três partes: 1) Os encontros e os temas; 2) Relação dos temas ao longo dos encontros; e 3) Relação dos encontros com os questionários dos familiares.
Os encontros e os temas
O estudo dos encontros baseou-se na transcrição dos diálogos e releitura das falas com recurso à memória pessoal através da participação enquanto adulto e da observação. Após cada encontro, eram reunidos os temas e questões que tinham surgido nas conversas para que fossem retomadas no dia seguinte. As transcrições foram realizadas a partir das gravações autorizadas pelas famílias e professoras, assim como pelo assentimento das crianças. Das leituras identificaram-se temas para pensar sobre as falas das crianças: brincadeira, espaços/condições, movimento, pensamento, regra, relação eu-outro, família e medo.
No início do primeiro encontro, durante a apresentação dos participantes da roda e da dinâmica dos encontros, surgiu um questionamento sobre o que é o pensamento. A pergunta foi uma reação à apresentação e ao convite sobre a proposta da roda do pensamento, e se prolongou pelos encontros seguintes, derivando noutros temas majoritariamente relacionados com o movimento. O tema da brincadeira surgiu pela primeira vez associado ao pensamento, gerando uma primeira relação entre crianças:
"[Pensar] é brincar com as coisas" (Vic.).
"Pensar não é brincar" (J.).
"Não [pensamos com as pernas]. É com a cabeça" (Vit.).
Nesta relação entre brincar e pensar, o movimento foi um tema muito presente, e que permeou a pesquisa entre essas duas ideias, relacionando pensar-falar-parar com brincar-não falar-mexer.
"O Miguel9 não está a brincar, está deitado" (J.).
"À noite eu penso em histórias. E não estou parado" (R.).
"Não! [não pensou em nada enquanto caminhava] (S.).
"Temos que andar a mexer os pés" (H.).
A partir da reflexão sobre o brincar e o pensar, que acompanhou os três encontros, foi proposta no segundo encontro uma brincadeira que envolve o movimento e a parada enquanto pesquisa/exploração da vivência do pensamento - jogo da estátua10. Este jogo tornou-se uma prática experienciada de movimento e brincadeira. Dessa forma, houve três situações em que a turma teve experiência conjunta da mudança de espaço/movimento durante a semana das sessões de Filosofia com crianças:
Ida à praia: de ônibus com tempo de brincadeiras na praia, proposta pela escola.
Jogo da estátua: dentro da sala da turma, proposta pelos pesquisadores.
Ida ao cinema: caminhada com a professora até ao cinema e momento de visualização do filme, proposta pela professora.
Estas práticas foram referidas como matéria de pensamento, como experiências e questionamentos sobre as próprias ideias. Neste conjunto de práticas surgiram bastantes referências ao espaço. Distingue-se aqui dois tipos de falas associadas à experiência do espaço e ao longo da pesquisa de pensamento: a observação - descrição - e o questionamento - momento em que surge a dúvida e a troca de opinião.
As falas de descrição foram muitas vezes menções a espaços de brincar. À medida em que surgiam referências a lugares durante a conversa, as descrições ganharam mais extensão, parecendo haver uma memória coletiva relacionada aos espaços vividos em grupo e compartilhada na roda.
"O escorrega não é tão grande como as montanhas. É mais pequenino" (Vit.)
"O escorrega é quase uma montanha" (J.).
"Quando eu fui passear eu vi flores!" (Al.).
"Um parque! [viu um no caminho para o cinema]" (A.H.).
Tinha um escorrega e uma escada muito grande! Que ia do chão até o céu. Tinha uma escada que subíamos e depois [...], e quando rodávamos era um labirinto, e tinha uma escada. O parque era do tamanho do céu à terra! (A.H.) g
"Podíamos escorregar até aqui wowow!" (T.).
Quando surgiram questionamentos sobre o espaço, estes £ estiveram mais relacionados às condições espaciais e a regras. É de L salientar que o tema regra parece surgir relacionadas às falas em que é referido o espaço, o que entretanto não ocorre na situação oposta:
"[Chover na praia] não é igual [a chover em casa]" (A.).
"E como é que nós dormimos lá fora?" (J.).
"Podemos pensar depois dos carros passarem" (J.).
"Não podemos brincar nas montanhas porque caímos" (Vit.).
Ao falarem sobre andar na rua, houve um grande número de regras elencadas pelas crianças, o que não acontece com tanta frequência relativamente aos outros espaços - praia, parque, jardim. A figura do adulto/família aparece muito mais nestas falas quando é referido algum perigo ou cuidado:
"Quando o sinal do carro fica vermelho eles não podem passar, quando fica verde eles podem passar" (S.).
"[Atravessar a estrada] com cuidado" (J.).
"Não [podemos brincar na rua]" (J.).
"Podemos andar na rua com os pais, se os pais deixarem" (J.).
"E a avó e o avô [podemos atravessar de mãos dadas com]" (T.).
"[Não podemos brincar na rua porque] podemo-nos magoar"(J.).
"Só podemos brincar lá fora às vezes" (J.).
Do cruzamento do diálogo na roda com as experiências em grupo ligadas ao movimento, foi questionado num determinado momento sobre a ambivalência do que é considerado real e do que é apercebido de modo distinto por diferentes pessoas. Esta discussão surgiu no final do segundo encontro, permitindo adentrar nos temas propostos a partir do questionamento filosófico das crianças. A questão surgiu a partir do momento do jogo da estátua e voltou a ser referido ao falar da ida para o cinema em que as crianças se deslocaram em fila como num comboio. Esta situação provocou uma troca de ideias que relacionaram a noção de realidade e de linguagem/expressão falada:
"Mas ninguém andou de comboio a sério. Isso foi a fingir" (J.).
"Não andamos de comboio" (J.).
"[Não era um comboio a sério] porque era a gente que tava a fazer. Quando fazemos o comboio os pés andam e quando andamos no comboio nós estamos parados, o comboio é que anda" (Vit.).
"[O comboio anda] com rodas e a gente anda com os pés" (Vit.).
Nesses diálogos, houve um exercício de entender o comboio como figura de expressão em contraponto com a definição de transporte - trem/comboio. A relação dos corpos juntos que formam um comboio alimentou a investigação sobre como se comunica, como se vive e como se percebe a experiência.
Relação dos temas ao longo dos encontros.
Nos três encontros os temas foram variando, como pode ser observado na figura 1. No primeiro dia, os momentos de apresentação de cada criança e do exercício proposto apresentaram-se como possibilidade de interação e de colocação pessoal e relativamente ao outro.
"Eu penso em comida desde que nasci" (A.).
"Eu também [cozinho com a minha mãe]" (Vit.).
"Eu penso a mesma coisa que eu disse" (J.).
Este foco vai diminuindo ao longo da semana - os temas pensamento e relação eu-outro vão decrescendo. Observa-se que as referências espaciais e ao movimento aumentam numa transição sugerida pela relação pensar-brincar. As falas sobre os lugares por onde passam/caminham/brincam centram-se muito nos momentos que viveram nessa semana, havendo pontualmente algumas memórias de outros momentos em família.
"Eu já andei de comboio num sítio que se chamava França"(Vit.).
As falas sobre o movimento surgem bastante associadas às do espaço, sobretudo em questões relacionadas ao uso e à ação realizada nos lugares e ao deslocamento.
"Depois voltamos para a escola" (Vit.).
"Não [fizemos nada na chuva]. Fomos a correr para o autocarro"(Vit.).
"[A viagem de autocarro] foi boa" (H.).
"Eu já andei de comboio uma vez" (A.).
"[Podemos nadar e brincar] na praia" (Vit.).
"Brinquei nos balanços" (Al.).
As experiências em grupo que foram sendo criadas centraram os temas das conversas, havendo pouca referência a experiências familiares, com exceção de situações específicas, como a caminhada na rua com as família/professores e o episódio de contação de histórias em sala de aula pela mãe de uma das crianças.
Por fim, é notável o aumento contínuo no número de pensamentos ao longo das sessões, em que, apesar de ter reduzido o número de crianças participantes, aumentou o número de pensamento compartilhados em roda. Individualmente, os temas que mais surgem associados nas falas das crianças são: movimento, espaço/condições e brincadeira.
Relação dos encontros com os questionários dos familiares.
A associação das falas das crianças com as percepções de seus familiares sobre a mobilidade urbana permitiu com que fossem feitas análises referentes à influência de determinados fatores na construção dos temas abordados nos encontros de Filosofia com crianças. Devido ao número reduzido de participantes desta pesquisa - 15 crianças e 12 familiares -, é importante ressaltar o caráter exploratório desta pesquisa, que busca tematizar as percepções do espaço e do movimento por crianças incluindo métodos de pesquisa que derivam da pedagogia, da arquitetura e dos transportes.
Na figura 2, observa-se a composição dos temas tratados nas sessões de diálogo filosófico de acordo com o gênero, isto é, por meninas e por meninos. Ambos os grupos parecem abordar todos os temas; entretanto, maiores diferenças parecem ser encontradas na relação eu-outro, em que este tema é tratado em 13% das falas pelos meninos, contra 5% pelas meninas. Por outro lado, entre as meninas pode ser destacada a maior participação de falas relacionadas ao movimento - 22% meninas, 17% meninos - e à brincadeira - 17% meninas, 13% meninos. Falas ligadas ao pensamento e à regra tiveram participações similares entre meninas e meninos, na ordem de 11%.
A distância que vivem de casa, obtidas da localização estimada de suas residências a partir do código postal fornecido pelos familiares, foi possível dividir as crianças em dois grupos de igual tamanho: as que vivem a mais de 1000m a pé do colégio e as que vivem a uma distância menor ou igual a 1000m. Vale ressaltar que as distâncias calculadas correspondem a distâncias ao longo da rede viária utilizando o modo a pé. Analogamente à comparação por gênero, o fator da distância também parece influenciar a preponderância do tema da relação eu-outro: 20% das falas das crianças que moram mais próximas à escola, contra 6% das que moram mais longe da escola. Por outro lado, as falas sobre espaços/ condições e sobre o movimento foram mais predominantes entre as crianças que moram mais longe da escola - 28% vs. 22% para espaços/condições e 21% vs. 16% para movimento. Considerando a velocidade a pé de uma criança de quatro anos, pode-se dizer que as diferenças identificadas a partir do limite de 1000m correspondem a quem vive a mais de 15 minutos a pé da escola ou a 15 minutos ou menos da escola.
Pela indicação dos familiares ao grau de concordância com frases que buscavam retratar a percepção sobre situações que envolvem o uso do carro e o andar a pé, foi possível identificar algumas diferenças com relação aos temas abordados pelas crianças. Com relação ao uso do carro, expressado na frase "Andar de carro me permite evitar os riscos oferecidos pela cidade", percebe-se que as crianças que mencionam regras e a relação eu-outro com maior frequência são aquelas cujos pais associam o uso do carro a menores riscos da cidade. Analogamente, as crianças cujos familiares não fazem essa associação apresentaram uma maior participação de falas relacionadas ao movimento, ao pensamento e aos espaços/ condições. Com relação à percepção sobre o andar a pé, expressado na frase "Sinto-me melhor a andar a pé do que em automóvel", houve diferenças marcantes sobretudo em dois temas: o pensamento, identificadas em crianças cujos pais sentem-se melhor de carro que a pé - 38% vs. 12% -, e os espaços/condições, nas crianças cujos pais sentem-se melhor a pé que de carro - 26% vs. 13%.
Discussão
Este estudo tematiza as percepções do espaço e do movimento por crianças a partir de suas referências ao espaço e à mobilidade, observando os contextos de conversa em que surgiam. Nesse sentido, buscou-se que os temas fossem sendo elaborados a partir de propostas das crianças ao longo das conversas, havendo uma atenção especial dos adultos às categorias de espaço onde se movem, onde brincam e de todo o universo de questões e sensações relacionadas.
É importante considerar as saídas da escola de ônibus e a pé como experiências que influenciaram as observações e os temas das conversas. O fato de ter existido a experiência vivida de brincar na praia, fugir da chuva, cruzar um parque ou atravessar a rua introduziu nos encontros descrições e questões recorrentes sobre a percepção de espaço e de comportamento. É de realçar que estas propostas de mobilidade e de usufruto dos espaços públicos durante o tempo em que as crianças estão na escola partem da direção da escola e das professoras. Na saída que as crianças fizeram até ao cinema, a professora levou um sinal para indicar aos carros que parassem - STOP - e que tinha um sorriso na parte de trás, como agradecimento. Aqui entram em questão as regras de uso do espaço que podem ser questionadas na livre apropriação dos lugares e na definição das normas que podem estruturar a saída para um lugar público/rua de forma individual e coletiva.
O fato dos temas mais associados nas falas das crianças serem o movimento, o espaço e a brincadeira pode refletir que uma das grandes fontes de repertório de ações e percepção de ambientes são os momentos em que brincam e que usufruem fisicamente dos lugares que ocupam e por onde passam, enfatizando a importância e a experimentação física do entorno.
A pesquisa foi realizada com quatro turmas do jardim de infância, ao longo de duas semanas, num total de onze encontros com todas as turmas. A turma aqui referida foi aquela em que foi possível reunir mais material com as famílias e em que os temas tiveram uma relação mais forte com a percepção do espaço pelas crianças. O fato de terem sido apenas três encontros torna estas observações muito pontuais, podendo em futuros projetos ser alargado este período potenciando a aproximação à turma, a definição de confiança e a exploração dos temas com mais tempo e calma. Mesmo assim, houve um grande envolvimento da equipe da escola, dos familiares e das crianças. Além disso, o número reduzido de crianças e de familiares que responderam ao questionário não permite que sejam feitas generalizações sobre outros grupos de crianças, o que também é convergente ao caráter exploratório desta pesquisa.
É de notar que esta escola é integrada ao Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa e atende majoritariamente crianças de pais que trabalham nesta instituição. Este contexto é definido por uma concentração de renda e por um contexto sócio-cultural de convergência de projetos propostos às crianças dentro da área acadêmica. Além desse fator, a escola situa-se numa área central da cidade, que recebeu recentemente um grande investimento em melhores condições de mobilidade ativa, tais como calçadas, ciclovias e arborização. Este é um fator que parece influenciar a capacidade de usufruto dos espaços do entorno escolar e dos serviços culturais da cidade. Poderá ser interessante comparar as percepções das crianças em contextos escolares e urbanos distintos para entender se e o quanto essas questões poderão influenciar as suas discussões.
Também é de se destacar a relação entre o número de crianças e de adultos nas sessões. No momento em que os pesquisadores envolvidos trabalharam com crianças pequenas, num número reduzido de encontros e por serem de áreas distintas de pesquisa, acabaram por sempre estarem os três presentes na roda - o número máximo de crianças foi de 14, no primeiro encontro. Procurou-se ter uma posição integrada na roda, respeitar os tempos do grupo, bem como o tempo de fala de cada uma das crianças e contribuir para o conforto de todas. Foi uma experiência interessante na auto-mediação enquanto adulto no grupo, podendo ser estudada com maior profundidade também a partir das gravações em questões como o tempo de fala do adulto em relação ao da criança, quem lançou mais perguntas e se a liberdade que se pretendeu criar foi realmente respeitada. A observação destes aspectos é essencial para práticas futuras. Apesar da grande proporção de adultos em relação às crianças, identificou-se a importância de ter estado presente e ter assumido a construção de um espaço comum junto às crianças e à professora.
Pelo grupo de adultos ser composto por duas pessoas com experiência em projetos com crianças mas não de filosofia, a realização desta pesquisa foi muito discutida antes de ser proposta. Libertar o discurso e permitir a ocupação do espaço da troca e do diálogo pelo pensamento das crianças foi um exercício que exigiu bastante atenção e discussão fora das sessões. Foi muito interessante o encontro das áreas de estudo no processo de aprendizado sobre o estado de infância na pesquisa individual e em grupo.
Além do discurso falado, a presença permitiu observar e sentir as hesitações, as expressões de dúvida, o movimento do corpo, materiais que se tornam camadas dos diálogos. Neste estudo não focamos nestas camadas de relação entre o grupo ou de expressão corporal na ligação com o tema ou questionamento, embora tenha sido considerado relevante no estudo da percepção de conforto/ desconforto, do medo, da confusão, do entusiasmo, entre outras sensações que acompanharam as falas das crianças.
Embora a experiência com a turma de três anos não tenha sido tratada neste estudo, pode-se dizer que estes aspectos relacionados ao grupo e à expressão corporal pareceram bastante preponderantes sobretudo com as crianças desta turma, uma vez que a questão do movimento na própria roda enquanto se conversa é muito presente. Talvez a conversa possa ser proposta sobre atividades ou a partir do próprio ato de brincar.
No geral, várias questões propostas pelas crianças alimentaram esta pesquisa relativamente à percepção e às experiências de mobilidade. A própria consciência do movimento pela criança pareceu ser trabalhada na experiência do seu corpo enquanto promotor de movimento, assim como a da filosofia na prática do diálogo e do questionamento: poderá o movimento ser uma prática filosófica e o questionamento um exercício de mobilidade?
Para próximos estudos, poderá ser interessante seguir associando a experiência física do movimento - brincadeira ou deslocamento - com as sessões de diálogo e filosofia em roda na sala. Nestas experiências poderão ser registrados o pensamento quer na roda, quer no momento de brincar bem como o comportamento e percepção do ambiente nas duas situações.