INTRODUÇÃO
O vírus da imunodeficiência humana (HIV) e a síndrome da imunodeficiência adquirida (aids) caracterizam-se como um desafio global desde a década de 80, no século XX, visto que envolve repercussões epidemiológicas, socioculturais, econômicas e clínicas na vida das pessoas acometidas1. Por seu caráter pandêmico, o HIV representa um dos maiores problemas de saúde pública atual e demanda empenho por parte de toda a sociedade e profissionais de saúde, a fim de proporcionar qualidade de vida por meio da prevenção da doença.
Nas três últimas décadas, a epidemia no mundo e, mais especificamente no Brasil, tem apresentado transformações epidemiológicas e sociais que lhe impuseram características diferentes daquelas do início. Dos centros urbanos passou a existir nos pequenos municípios, das classes altas passou a ser vivenciada entre as mais pobres, da realidade artística e cultural passou a fazer parte da vida de toda a sociedade. Antes limitada a grupos específicos como homossexuais, profissionais do sexo e usuários de drogas, passou a figurar entre mulheres, crianças e idosos2.
Quanto ao cuidado dos profissionais de saúde à mulher vivendo com HIV, este é marcado pelo debate dos efeitos sociais na maternidade e na saúde da criança. Desde 2000 até junho de 2015, foram notificadas, no Brasil, 92.210 gestantes infectadas com o HIV. A taxa de detecção vem apresentando tendência de aumento nos últimos dez anos, sendo maior na região Norte (211,1%), que apresentava uma taxa de 0,9 em 2005, passando para 2,8 em 2014. Entre os estados destacam-se o Pará e o Amapá3.
As representações sociais são importantes para a prática profissional, pois expressam os processos e mecanismos pelos quais o significado social do objeto é construído pelos sujeitos nas suas relações cotidianas, desenvolvendo a base simbólica sobre a qual se ajustam as práticas de cuidado em saúde. Além do conhecimento científico revelado em representações socioprofissionais, há também um saber prático relacionado aos valores, normas, crenças e memórias divididas entre os grupos2.
O emprego do referencial teórico das representações sociais em pesquisas realizadas por profissionais da saúde tem se intensificado, abrangendo assuntos pertinentes às doenças e às formas de cuidado. Especificamente no contexto HIV, as representações dos profissionais de saúde sobre o cuidar de pessoas com HIV se ancoram entre as barreiras do passado e as possibilidades do presente4.
As práticas cotidianas desses grupos são influenciadas pelas percepções da aids por meio de construções, representações e estereótipos contidos na subjetividade dessas associações5. Entender as representações sociais dos profissionais de saúde sobre mulheres que vivem com HIV, possibilita compreender o passado e o presente de suas práticas de cuidado nesse contexto, visto que tais representações sociais são historicamente construídas e estão estreitamente vinculadas aos diferentes grupos socioeconômicos, culturais e étnicos que as expressam por meio de mensagens e se refletem nos diferentes atos e nas diversificadas práticas sociais.
Com vistas a justificar o estudo deste objeto: as representações sociais de profissionais de saúde sobre mulheres que vivem com HIV, realizouse busca na produção científica divulgada nos periódicos das seguintes base de dados: LILACS, MEDLINE e BDENF. Os critérios de inclusão foram: artigos, dissertações e teses completas nos idiomas Inglês, Espanhol e Português, com metodologia qualitativa, disponíveis on-line no período de 2005 a 2015. Excluíram-se os artigos de revisão de literatura, reflexões e resenhas, assim resultaram 536 produções. No entanto, após a aplicação dos critérios de inclusão, constatou-se que somente 20 estudos atendiam aos critérios estabelecidos.
Considerando a magnitude do fenômeno e a persistência do estigma e preconceito acerca do HIV, torna-se pertinente realizar pesquisas sobre a temática, uma vez que, na região norte e no Pará, poucas pesquisas versam sobre o fenômeno/objeto deste estudo. Assim, elaborouse a seguinte questão: Quais são as representações sociais de profissionais de saúde sobre as mulheres que vivem com HIV? Para respondêla, traçou-se o seguinte objetivo: Apreender as representações sociais de profissionais de saúde sobre as mulheres que vivem com HIV.
A investigação das representações sociais pode despertar o interesse em realizar estudos com outros objetos, a partir da compreensão da totalidade dos fenômenos sociais e seus desdobramentos. O presente estudo poderá contribuir para a melhoria do agir profissional no cuidado às mulheres em todos os níveis de atenção em saúde.
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de um estudo de natureza exploratória, descritiva, com abordagem qualitativa6, inserido em uma pesquisa multicêntrica intitulada: “As transformações do cuidado de saúde e enfermagem em tempos de AIDS: representações sociais e memórias de enfermeiros e profissionais de saúde no Brasil”. Apoia-se na abordagem processual da Teoria das Representações Sociais (TRS).
A abordagem processual permite apreender o conteúdo das representações, ou seja, seus elementos constituintes, que podem ser: informativos, cognitivos, ideológicos, normativos, crenças, valores, atitudes, opiniões e imagens. Utiliza métodos de enquete, entrevista, questionário ou tratamento de material verbal registrado em documento7.
A pesquisa ocorreu em três serviços de saúde que atendem pessoas vivendo com HIV e são referência em infecções sexualmente transmissíveis e HIV no município de Belém-Pará: Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA), Unidade de Referência em Doenças Infecto Parasitárias Especiais (UREDIPE) e Centro de Atenção à Saúde em Doenças Infecciosas Adquiridas (CASA DIA).
Participaram 37 profissionais de saúde atuantes nos três serviços. Estes fizeram parte do grupo de 114 profissionais de saúde que participaram da primeira fase do estudo e que estavam presentes nesta segunda fase da pesquisa, atuando nos serviços. Foram incluídos profissionais que atuavam diretamente no cuidado às pessoas com HIV e excluídos aqueles que não possuíam vínculo institucional e os que não foram localizados no serviço ou locais indicados, após, pelo menos, três tentativas de acesso.
As informações foram coletadas de setembro de 2012 a junho de 2013 por uma equipe de sete pesquisadores voluntários (quatro acadêmicos de enfermagem e três enfermeiros). Após os participantes assinarem o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), realizou-se a entrevista em profundidade guiada por um roteiro com cinco blocos temáticos. Para garantir o anonimato dos participantes, o registro das entrevistas foi feito em uma planilha contendo códigos numéricos, serviço em que atuava, sua função e nome do entrevistador.
O corpus gerado pelas respostas obtidas nos cinco blocos temáticos foi submetido à análise lexical, utilizando-se o software ALCESTE (Análise Lexical por Contexto de um Conjunto de Segmentos de Texto) 4.10, desenvolvido por Max Reinert, em 1979. Na ordenação obtida pelo ALCESTE, cada entrevista é considerada uma unidade de contexto inicial, constituindo-se Unidade de Contexto Inicial (U.C.I.)8.
O relatório do Programa gerou um total de 211 páginas e 932.217 caracteres. Na Análise Standard foram identificadas 37 U.C.I. (total de entrevistas realizadas). O ALCESTE dividiu o corpus de análise em 3.959 Unidades de Contexto Elementares (U.C.E.) e cinco classes, cujo dendograma apontou os léxicos mais importantes contidos em cada classe. Para fins deste estudo, foi analisada a classe 2 nomeada “Profissionais de saúde e as pessoas que vivem com HIV”.
Este estudo obteve parecer favorável do Comitê de Ética da UERJ em 16/11/10, n°. 074/2010-COEP e do Comitê de Ética da UEPA em 14/12/10, n°. 0069.0.321.000-10.
RESULTADOS
Sobre os profissionais de saúde: quem fala e de onde fala
Quanto aos participantes, o grupo majoritário foi do sexo feminino, com idade entre 31 a 40 anos, tempo de formação profissional de 6 a 15 anos e de atuação com pessoas vivendo com HIV menor ou igual a cinco anos. Quanto à categoria profissional, participaram dez técnicos de enfermagem, seis enfermeiras, seis médicos, seis assistentes sociais, dois psicólogos, dois nutricionistas, dois farmacêuticos, dois terapeutas ocupacionais e um fisioterapeuta.
Concernente à classe 2, foi formada por 763 U.C.E., sendo a segunda classe de maior significância em termo de agregação de U.C.E, perfazendo 29,0% do total. No entanto, referente ao qui quadrado (χ2), em termo de significância estatística (> qui quadrado), passa a ocupar a quarta posição.
Os léxicos ilustrativos da classe, associado às ideias centrais das U.C.E., apontaram, dentre outros aspectos, a vitimização e a culpabilização da mulher que vive com HIV, do que tratamos a seguir.
Sobre as mulheres que vivem com HIV: vítimas dos parceiros e culpadas da transmissão vertical
Os profissionais de saúde percebem no seu cotidiano que há um número maior de mulheres infectadas pelo HIV. Mulheres, em sua maioria, com relações heterossexuais em relacionamentos estáveis com um único parceiro.
Atualmente eu vejo como mais cansativo o nosso trabalho diante dessa população (muitas mulheres) que está vindo com a infecção. Daí trabalhar as relações afetivas, as relações dentro do casamento. As esposas estão sendo infectadas pelos seus maridos em maior proporção (P18).
Os profissionais de saúde veem essas mulheres como vítimas de seus parceiros/maridos, revelando sentimentos de pena, revolta e indignação frente à contaminação. O marido é o vilão da história:
Nós morremos de pena. Eu sinto quando elas não sabem, os maridos não contam. Vemos essas pessoas como vítimas, porque confiaram no marido (P10).
Peguei do meu marido! Por que meu marido trouxe isso da rua? Você fica penalizado, porque a pessoa não tinha culpa, e tem gente que diz: está, porque confiou no marido (P36).
Quando se trata de pessoas contaminadas, eu sendo uma mulher, a minha primeira impressão é de revolta, porque assim como eu tenho meu marido, tenho aquela ideia de relacionamento estável, e eu nunca vou pensar nisso (P28).
Esta situação também revela a relação de gênero entre homens e mulheres em que um exerce poder sobre o outro. As expressões “relações de gênero”, “homem é mais culpado”, “relacionamentos de muito tempo” e “eu vou confiar nele” reforçam tais ideias:
Como os nossos HIV positivo, temos dificuldades em convencer o homem a usar preservativo. Essas condutas e práticas das relações de gênero que a sociedade enfrenta, e os nossos hiv positivo também enfrentam (P19).
Tanto para os outros da equipe de saúde quanto a minha opinião também. Quando se trata de pessoas contaminadas tem diferença sim, quando é mãe, mulher. Se formos ver antropologicamente, achamos que o homem e mais culpado (P11).
Eles me pedem muito o preservativo. Nas relações, tem homem que é resistente a usar o preservativo, principalmente quando nós temos um relacionamento de muito tempo (P12).
É meu marido, meu namorado eu não vou usar o preservativo porque eu vou confiar nele e ele confia em mim e ai acaba acontecendo (P10).
Observa-se que os profissionais de saúde identificam as relações de poder, principalmente quanto ao uso do preservativo que não é utilizado pelas mulheres, por acharem que vivem uma relação estável e blindada pelo casamento, ou seja, de confiança.
As esposas confiam nos maridos, mas estes trazem a doença para dentro de casa. Porque aquela esposa pensa que nunca vai ter porque é casada (P14).
O que marcou foi uma mulher casada, que sempre foi fiel ao marido, com três ou quatro filhos, mas que quase morre (de aproximadamente cem quilos passou para oitenta quilos). Por causa da infidelidade do marido pegou aids (P09).
O meu primeiro HIV positivo, nunca esqueci. Era um homem de trinta e seis anos, marinheiro, muito bonito, casado e bissexual, adquiriu o HIV nas viagens, contaminou a esposa e condenou-a a morte. Ele descobriu o HIV seis meses depois do casamento (P13).
Quando se trata de pessoas contaminadas, se for esposa contaminada pelo marido, infelizmente é porque ela, a esposa, confia demais e se contamina (P30).
As expressões “sempre foi fiel ao marido”, “por causa da infidelidade do marido”, “casado e bissexual” e “confia demais e se contamina” reforçam o pensamento que os profissionais de saúde têm a respeito da vitimização das mulheres. Destacam a ideia de que as relações sexuais extraconjugais, a confiança e o casamento, as deixam mais vulneráveis ao HIV.
A maioria das mulheres não tem condições de negociar o uso do preservativo e têm autoestima muito baixa. Existe uma serie de aspectos que devem ser problematizados para que se possa pensar em políticas públicas para fazer esse enfrentamento (P17).
O surgimento do preservativo feminino é uma forma a mais de se convencer o parceiro sexual a se prevenir, já que a esposa tinha e tem muita dificuldade em convencê-lo a usar o preservativo masculino (P06).
Se eu peguei do meu marido e eu só transava com ele, sou uma grande vítima, ele diz não precisa de preservativo. Mas se tenho uma relação sexual extraconjugal, se sou solteira e transei sem preservativo, se sou profissional do sexo ou homossexual, eu mereço, eu procurei, eu tenho culpa (P24).
Nós, assim como os nossos HIV positivos, temos dificuldades em convencer o homem a usar preservativo. Nós também sofremos com essas condutas e práticas de relações de gênero que toda a sociedade, e os nossos HIV positivos também enfrentam (P33).
Os profissionais apontaram que, quando o marido é diagnosticado com HIV, a esposa sempre o acompanha, o que não ocorre no contrário.
E existe também a situação da esposa e do marido. A esposa quando descobre se envolve em um problema muito sério com o marido, apesar de que a grande maioria não larga. Eu só conheço um HIV positivo que a esposa foi embora depois-que descobriu (P36).
É, infelizmente, vemos muitos casos de esposas contaminadas que foram vítimas. Uma coisa que eu sempre comento é que quando a mulher vem com a doença, já bem debilitada, você não vê o marido do lado. Quando o inverso acontece, a mulher sempre está com ele (P28).
Outra situação que se destaca é que, para os profissionais de saúde, a mulher que vive com HIV pode ser culpada frente às possibilidades e incertezas que oferece para o futuro do seu filho com a transmissão vertical.
Quando se trata de pessoas contaminadas, eu vejo assim: quando a mãe não tem informação, não tem culpa. Mas, quando tem, ou seja, quando é orientada, ela é culpada (P10).
Você tem como fazer isso: não contaminar uma vida. Você sabe que você e positiva e tem tudo para não engravidar e engravida. É muito difícil explicar para uma pessoa leiga que a criança pode nascer com HIV, mas eles acham sempre que não vai nascer. Tomam os antirretrovirais e acham que vai nascer bem (P25).
A ideia de que a mulher que vive com HIV não deve engravidar é reforçada pelos profissionais, os consideram perigoso engravidar e, de acordo com seus pensamentos, a mulher que faz esta escolha não tem informação sobre o assunto.
Com certeza, as pessoas contaminadas são vítimas porque a outra pessoa não as respeitou. A mãe não teve cuidado com a sua saúde, nem com a do bebê. Por isso merece pena e devem receber mais cuidados em saúde (P21).
Se a mãe tivesse feito o pré-natal dava para se ter detectado o HIV, evitando a contaminação da criança. Isso me dá uma revolta… (P28).
A gestação da mulher que vive com HIV é considerada de alto risco e deve ter acompanhamento pré-natal rigoroso. Deve ser conduzida por uma equipe multiprofissional em serviços de referência especializados, para que todos os aspectos da saúde desta gestante sejam contemplados.
As pessoas contaminadas são grandes vítimas dessa situação infelizmente. Principalmente quando olhamos para a criança: por que a mãe não fez o pré-natal? (P17).
Mas aquelas mulheres que sabidamente já são matriculadas aqui no serviço, que engravidam e não fazem o tratamento de forma correta, nós vemos como totalmente irresponsáveis (P03).
A discriminação se revela na sugestão de condutas que desvalorizam a mulher. O léxico esterilizar aparece como uma solução para evitar a concepção de crianças com HIV.
Mas para isso, lá na ponta, no pré-natal, tem que ter condições para oferecer um bom pré-natal, não esse pré-natal capenga que oferece. Não pode oferecer um bom pré-natal, mas pode pegar essa mulher e esse homem e esterilizar (P17).
Observa-se que os profissionais de saúde apresentam representações fortemente negativas, ligadas à culpa, ao descuido e à revolta quanto à situação de mulheres que vivem com HIV e engravidam. São vistas como irresponsáveis e descuidadas frente ao não acompanhamento pré-natal e consequente risco de transmissão vertical.
É da mãe, quando a mãe já sabe que tem HIV e mesmo assim engravidou. Eu, nós não podemos tirar o sonho de ninguém, o desejo da mulher, mesmo ela sendo soro positiva, de querer ter (P12).
Eu não me sinto a vontade e nem me sinto no direito de dizer para ela que não pode ser mãe. Claro que eu vou esclarecer sobre o que pode enfrentar: que pode vir a ter uma criança infectada e que vai nascer com alguma dificuldade (P20).
Tais valores estão mergulhados em sentimentos de indignação, revolta e pena, colocando os as mulheres como vítimas ou culpadas. Como as representações sociais são guias para a ação, infere-se que o agir cuidativo dos profissionais de saúde é motivado por tais conteúdos-função de orientação.
DISCUSSÃO
Sobre os profissionais de saúde, tais variáveis refletem tratar-se de profissionais jovens - alguns sequer eram nascidos no início da epidemia na década de 80 - que evidenciam não só os seus pensamentos sobre a doença e as pessoas por ela acometidas, mas também, o de suas pertenças sociais.
Os profissionais de saúde observam que há um número maior de mulheres contaminadas pelo vírus do HIV, esse contexto é resultante do fenômeno da feminização do HIV que tem sido observado mundialmente, com maior dimensão nos últimos cinco anos9. Quando surgiu o HIV, era comum o adoecimento de mulheres de usuários de drogas injetáveis, hemofílicos, homens bissexuais ou profissionais do sexo10. Porém, desde a década de 90 ocorreu uma mudança nesse perfil, pois cada vez mais as mulheres vêm se contaminando por meio de práticas heterossexuais, na maioria das vezes, com parceiros fixos e relações estáveis.
As mulheres são vistas como vítimas pelos profissionais de saúde. A ideia de vitimização feminina é reforçada em estudo sobre as representações sociais sobre HIV de profissionais de saúde; estes identificam as mulheres monogâmicas contaminadas por seu parceiro como vítimas11. Isto reforça o imaginário de que o homem que contamina uma mulher em um relacionamento estável é considerado culpado.
Neste contexto, emerge uma relação de gênero que estabelece diferenças sociais e morais entre homens e mulheres, na qual as mulheres são ensinadas a serem submissas e a obrigação reprodutiva tem lugar principal. Entretanto, os homens possuem a função de dominadores e ativos, entendidos como subordinação social12, pelos participantes do estudo.
Para os profissionais de saúde, embora haja ampla disseminação da prevenção do HIV com o uso de preservativo masculino e, posteriormente do feminino, a ausência de diálogo na negociação do uso de preservativos as deixam mais expostas a terem relações sexuais desprotegidas. No entanto, a sua principal desvantagem é que ele requer a participação masculina que pode ser difícil de negociar, especialmente em relação onde há desequilíbrio de poder13. O HIV trouxe à tona a defesa de uma ordem moral conservadora que remete à valores familiares tradicionais, o que representaria uma garantia de proteção frente ao vírus7. Estas representações sociais são fortalecidas pelas tradições, e ao mesmo tempo em que se atraem, se repelem e permitem o nascimento de novas representações14.
O uso do preservativo, muitas vezes, é visto com desconfiança, por julgarem que só deve ser usado por grupos específicos. Quanto maior o tempo de relação do casal, há uma menor exigência do uso do preservativo, demonstrando que, para estes, a infecção pelo HIV está relacionada à pessoas que não estão em relacionamentos estáveis15. Porém, as transformações na epidemia provocaram mudanças dos sentidos do HIV de “doença do outro” para “doença do meu grupo” e de gênero entre as mulheres2.
As mulheres são as principais cuidadoras das pessoas quem vivem com HIV na família. Estudos mostram que as mulheres com HIV possuem profundo medo de abandono, violência e acusações ao divulgarem para os seus maridos que são HIV positivas16–17. Estudo realizado na Índia mostrou que a maioria dos cuidadores eram mulheres, as quais se dividiam em multitarefas: ser mulher, trabalhadora, mãe e cuidadora18.
Os profissionais de saúde destacaram em suas falas que as mulheres tomam para si a obrigação de cuidar do marido doente. Isto é demostrado pelas expressões “não larga” e “mulher sempre está com ele”. Tanto a pessoa que vive com HIV e o seu cuidador possuem necessidades integrais que estão relacionados com a melhoria da qualidade de vida, práticas de educação em saúde, apoio social e psicológico19. Mesmo na descoberta de que o marido pode ter se contaminado em relações extraconjugais, a mulher segue as leis matrimoniais e permanece ao lado dele.
Para os profissionais de saúde as mulheres também podem ser vistas como culpadas da transmissão vertical. A contaminação vertical ocorre através da passagem do vírus da mãe para o bebê durante a gestação, o trabalho de parto, o parto ou a amamentação. Durante os atendimentos é muito importante que se discuta com as pessoas que vivem com HIV o desejo de ter filhos. O aconselhamento pré-concepcional deve ser inserido no cuidado, pois contribui para informar a respeito das maneiras mais seguras de engravidar, favorece a adoção de ações que visem diminuir a carga viral, identificar a condição sorológica da mulher em relação às doenças infecciosas transmissíveis e atentar para a situação imunológica durante a gestação20.
Quando a mulher que vive com HIV engravida e o seu filho é contaminado, os profissionais consideram que não teve cuidado com a saúde durante o ciclo gravídico-puerperal, não se preocupou com o futuro filho, tornando-o vítima. Mesmo sabendo que, na atual conjuntura, esta mulher possa ter filhos com reduzido risco de contaminação, se acompanhada durante o ciclo gravídico-puerperal21. Tal compreensão se evidencia agora por meio de expressões sugestivas de pena e revolta e exige mais cuidado dos profissionais de saúde. Observa-se que há uma pressão para a realização do acompanhamento pré-natal e, quando não o faz, a mulher é vista como irresponsável e se torna culpada por tudo de ruim que possa a vir acontecer com seu filho.
O léxico esterilizar aparece como solução para impedir a gestação entre mulheres que vivem com HIV. Constata-se que o contexto da gestação associado ao HIV reflete fortemente questões éticas. Sabe-se que a legislação só permite a interrupção da gestação consequente de estupro e quando há risco de vida para a mãe22. Não há, no caso de infecção pelo HIV, somente pelo fato de a mãe ser HIV positivo, amparo legal para justificar esterilização de mulher ou homem.
O profissional tenta se eximir da culpa, projetando-a no pré-natal, exaltando uma esterilização coletiva sem dar os direitos à mulher a escolha de gestar uma criança. Esta representação social ancora-se em uma rede de significados, enraizando-se em valores sociais7, como o da eugenia nazista, onde os indivíduos superiores, ou seja, os não doentes com HIV devem ter suas características reproduzidas, enquanto os inferiores, pessoas com HIV, devem ser impedidos de propagar a sua “herança genética” - o vírus HIV - para as futuras gerações. Observa-se que as representações sociais se apresentam como uma “rede” de ideias, metáforas e imagens, tomando diferentes formas na memória do profissional14.
Estudo realizado com 285 mulheres que vivem com HIV na Améria Latina, verificou que o estigma associado ao HIV e a discriminação por profissionais de saúde são os principais motivos de esterilização forçada. Tal realidade pode ser modificada com a melhoria da formação profissional de saúde sobre HIV e direitos reprodutivos, criação de mecanismos por parte dos Estados para investigarem situações de esterilização forçada, além do fortalecimento da sociedade civil para aumentar a capacidade de mulheres que vivem com HIV resistirem à essa prática23. Assim é necessário que os profissionais de saúde sejam éticos, ouçam e informem adequadamente estas mulheres com vocabulário acessível, de maneira a garantir que estas sejam cuidadas e que os seus direito reprodutivos sejam respeitados24.
Segundo a lei n° 9.263/96 que define o planejamento familiar como parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, em uma visão de atendimento global e integral à saúde, esta conduta não respeita os direitos sexuais e reprodutivos das pessoas que vivem com HIV, já que elas devem decidir de forma livre e responsável sobre sua reprodução, tendo acesso à informação e aos produtos necessários para o exercício consciente da reprodução e de sua sexualidade, sem discriminação ou violência21.
Vale refletir como as mulheres estão sendo orientadas. Sabe-se que o cuidado de si é uma ação pensada e que vem a partir da reflexão sobre as ações educativas ensinadas pelos profissionais. Estes cuidados devem estar orientados naquilo que foi deixado para trás com o processo de vivência da enfermidade, direcionando um modo de cuidar dialógico, reflexivo e fundamentado nos sentidos construídos pelos próprios sujeitos do cuidado23.
Tais práticas devem abordar o contexto psicossocial das mulheres com HIV, para que possam atender suas questões subjetivas e sociais, visto que as ações de prevenção da transmissão vertical levam estas mulheres a terem angustia, medo e culpa. Tais impactos psicológicos surgem frente à diversas limitações ao cuidado do seu bebê, como o da não amamentação que, entre tantos benefícios, fortalece o vínculo mãe-bebê, mas que, diante da possibilidade de contaminação é contraindicada, sendo inibida logo depois do parto25.
As representações sociais têm relação com as práticas, pois são “uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social”7–23.
CONCLUSÕES
As análises pautadas na TRS em sua abordagem processual evidenciaram elementos pendulares, positivos e negativos, no conteúdo representacional dos profissionais de saúde sobre mulheres que vivem com HIV. Quanto à representação, destacam-se elementos positivos para justificar quando a mulher é considerada vítima e elementos negativos quando considerada culpada. O sentimento de invulnerabilidade da mulher logo se transforma em vulnerabilidade frente à contaminação do HIV, seja como vítima ou como culpada.
Considera-se que os conteúdos representacionais estão ligados a uma realidade multifacetada, que envolve os saberes, habilidades, conhecimentos e, principalmente, valores morais. Possuem um componente fortemente emocional, o que pode favorecer ou comprometer a assistência à saúde e a construção de laços de confiança entre o profissional de saúde e a mulher com HIV.
Cabe destacar que os profissionais participantes do estudo desenvolvem seu trabalho em serviços de referência em HIV, o que possibilita presumir que acompanham a evolução das políticas públicas e as transformações epidemiológicas da epidemia, que causam tensão e provocações em seu cotidiano.
Tais resultados podem inferir que, no imaginário coletivo, os profissionais de saúde têm dupla orientação para o agir profissional, o que viabiliza novas reflexões sobre esse agir, que ainda está vinculado às concepções históricas, valorativas e afetivas no que tange às pessoas que vivem com HIV.
Os resultados desta pesquisa poderão cooperar para o fortalecimento de ações de saúde direcionadas ao cuidado e as mais diversas práticas sociais de mulheres que vivem com HIV, mas há que se debater a superação de preconceitos e estigmas capazes de influenciar o agir profissional no contexto da educação permanente. O estudo poderá contribuir para discussões e suscitar novas investigações acerca das representações sociais no campo de saúde e de enfermagem.