INTRODUÇÃO
A Doença Renal Crônica (DRC) é um problema de saúde pública devido ao aumento de sua incidência e prevalência na população mundial, e do significativo impacto na morbimortalidade dos indivíduos acometidos. As limitações físicas, sociais e emocionais possuem grande interferência na Qualidade de Vida (QV) das pessoas, sendo a DRC responsável por altos custos para o sistema de saúde todos os anos1.
Segundo a Sociedade Brasileira de Nefrologia, o número total estimado de pacientes no país em julho de 2016 era de 122.825, o que corresponde a um crescimento de 31,5 mil pacientes nos últimos cinco anos, com aumento médio anual de 6,3%. Em alguns países da Europa e nos Estados Unidos, tem se percebido uma taxa de incidência com crescimento discreto. Nos EUA, nos anos de 2008 a 2013, a taxa de prevalência da doença teve aumento em torno de 3%2.
Quando a doença chega ao seu estado terminal, torna-se necessário realizar a Terapia Renal Substitutiva (TRS) por meio das modalidades Hemodiálise, Diálise Peritoneal ou Transplante Renal. A hemodiálise é um processo mecânico e extracorpóreo que promove a filtração sanguínea por meio de um capilar, o qual é responsável por retirar os produtos de degradação do metabolismo e os líquidos em excesso. Este procedimento é realizado geralmente em três sessões por semana com duração de quatro horas cada. Os pacientes que realizam esse tratamento devem ingerir medicamentos e seguir dietas, restringindo a quantidade de líquido ingerido3,4.
Os pacientes que realizam a hemodiálise ficam dependentes da máquina 12 horas por semana e destinam um longo tempo a esse tratamento que prolonga a vida, mas não controla totalmente as alterações do curso natural da doença, produzindo resultados inconstantes e limitações no cotidiano, cujas consequências, comprometem os aspectos físico e psicológico e a qualidade de vida5,6. A QV envolve a percepção que o indivíduo possui de sua própria vida a partir de aspectos culturais e compreende uma ampla gama de conceitos como boa saúde, moradia adequada, emprego, segurança, educação e lazer, bem como o grau de satisfação encontrado na vida familiar, amorosa, social, ambiental e valores existenciais7,8. Para mensurá-la em pessoas com DRC foi desenvolvido um instrumento específico, aplicável a pacientes que realizam algum tipo de programa dialítico: o Kidney Disease and Quality-of-Life Short-Form (KDQOL-SF™ 1.3), o qual já foi validado no Brasil9.
Devido às diversas mudanças provocadas pela DRC nas atividades diárias do indivíduo, no convívio com a família e amigos e nos hábitos de vida, como também as restrições físicas, o nível de qualidade de vida pode sofrer influência decorrente de modificações nos aspectos sociais e demográficos. O avançar da idade ocasiona maior comprometimento em aspectos físicos e funcionais; já os aspectos emocionais podem ser comprometidos quanto maior for o tempo de tratamento dialítico e menor a escolaridade. Além disso, a qualidade de vida pode correlacionar-se negativamente com funções psicológicas e emocionais em mulheres10,11.
A análise dos níveis de qualidade de vida dos portadores de DRC contribui para que intervenções possam ser elaboradas e aplicadas em prol desses pacientes que terão que conviver com a doença o resto das suas vidas já que a mesma não possui cura. Assim, o estudo tem como objetivo associar os domínios de qualidade de vida com as características sociodemográficas de pacientes renais crônicos em hemodiálise, a partir do Instrumento KDQOL-SF™ 1.3.
MATERIAIS E MÉTODOS
Estudo quantitativo, de delineamento transversal, realizado entre os meses de novembro e dezembro de 2015 numa Clínica de Hemodiálise numa cidade que integra o Território de Identidade do Piemonte Norte do Itapicuru, interior da Bahia, Brasil. O serviço oferece tanto a hemodiálise quanto a diálise peritoneal, possuindo 198 pacientes em tratamento hemodialítico, além dos pacientes em diálise peritoneal. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNEB sob o parecer 1.231.745/2015.
Com base total de 198 pacientes em hemodiálise, foi realizado o cálculo amostral, o que denominou uma amostra de 110 pacientes, os quais foram selecionados utilizando o método aleatório simples através de sorteio realizado no site random.org. A amostra foi constituída por pacientes a partir dos seguintes critérios de inclusão: ter diagnóstico de insuficiência renal crônica; ser cadastrado no programa de hemodiálise e realizar o tratamento três vezes na semana; estar em tratamento a mais de três meses. E como critérios de exclusão: idade inferior a 18 anos; pacientes com deficiência mental; incapacidade de comunicação ou dificuldade em responder ao questionário.
Para todos os entrevistados foi esclarecido sobre o objetivo do estudo, realizada a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e após os devidos esclarecimentos das dúvidas, os participantes que aceitaram colaborar com o estudo assinaram o TCLE. Houve a recusa por parte de cinco pacientes, desse modo a amostra estudada consistiu em 105 participantes.
As entrevistas foram desenvolvidas no espaço onde ocorrem as sessões de hemodiálise, estando os participantes devidamente acomodados e em uso das respectivas máquinas. Para a coleta dos dados sociodemográficos, econômicos e clínicos dos pacientes, foi utilizado um questionário contendo as seguintes variáveis: sexo, faixa etária, estado civil, anos de estudo, renda, trabalho e tempo de tratamento de hemodiálise.
Já a QV foi avaliada através do instrumento KDQOL-SF™ 1.3, específico para avaliar a QV do doente renal crônico7. O KDQOL-SFTM é um instrumento que inclui, como medida genérica de avaliação da saúde geral do indivíduo, o Item Short-Form Health Survey (SF-36), composto por oito domínios: funcionamento físico, função física, função emocional, função social, bem-estar emocional, dor, energia e fadiga e saúde geral; estes compõem o SF-12 componente físico e o SF-12 componente mental. E uma escala multi-itens com onze dimensões específicas para pessoas com DRC terminal em diálise, que inclui: sintomas/problemas físicos, efeitos da doença renal em sua vida diária, sobrecarga imposta pela doença renal, situação de trabalho, função cognitiva, qualidade das interações sociais, função sexual, sono, suporte social, incentivo por parte da equipe de diálise e a satisfação do paciente.
As respostas do KDQOL-SF™ 1.3 foram transportadas para um programa de análise produzido e disponibilizado pelo Working Group, através de planilhas do Microsoft Office Excel® onde foram calculadas medidas de tendência central (média e mediana) e medidas de dispersão (desvio padrão).
As médias dos 19 domínios foram calculadas por meio de média aritmética; apenas os valores dos itens componente SF-12 físico e componente SF-12 mental derivam de média ponderada12. O componente físico é determinado principalmente pelas dimensões funcionamento físico e função física, mas também por dor, saúde geral e energia e fadiga. Para a pontuação do componente mental a dimensão Função emocional tem maior peso, seguido em ordem decrescente por Bem-estar emocional, Função social, Energia/fadiga e Saúde Geral.
Os valores das médias de todos os domínios e dos dois componentes variam entre 0 e 100, sendo que, os que possuem maior número indicam maior qualidade de vida às pessoas com doença renal crônica e em hemodiálise.
A aplicação de testes estatísticos visando comparação e correlação entre valores ocorreu através do software STATA versão 12.0. Utilizou-se o teste de consistência interna Alfa de Cronbach (α) para testar a confiabilidade do instrumento. A fim de testar o tipo de distribuição (assimétrica ou não assimétrica) das variáveis foi utilizado o teste de Shapiro-Wilk. Baseado nesta distribuição, para a análise bivariada dos dados foram utilizados os testes de Wilcoxon-Mann-Whitney e T de Student e para a análise de correlação foi utilizado o teste de Correlação de Spearman. O intervalo de confiança foi estabelecido em 95% e o valor de p sendo significativo abaixo de 0,05 para todos os testes.
O estudo respeitou as exigências formais contidas nas normas nacionais e internacionais regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos.
RESULTADOS
Dos entrevistados, 57,1% eram do sexo masculino, 69,5% tinham até 59 anos de idade, 46,7% eram casados e 88,6% não exerciam atividade laboral (Tabela 1).
Variáveis | n = 105 | ||
---|---|---|---|
N | % | ||
Sexo | |||
Feminino | 45 | 42,9 | |
Masculino | 60 | 57,1 | |
Faixa etária | |||
Adulto (18-59 anos) | 73 | 69,5 | |
Idoso (60 anos ou mais) | 32 | 30,5 | |
Estado Civil | |||
Casado | 49 | 46,7 | |
Solteiro | 40 | 38,1 | |
Viúvo | 4 | 3,8 | |
Divorciado | 12 | 11,4 | |
Anos de Estudo | |||
Menos de 08 anos | 84 | 80 | |
Mais de 08 anos | 21 | 20,0 | |
Renda | |||
Até 1 Salário mínimo | 88 | 83,8 | |
2-4 Salários mínimo | 14 | 13,3 | |
5+ Salários mínimo | 1 | 1,0 | |
Sem renda | 2 | 1,9 | |
Trabalho | |||
Sim | 12 | 11,4 | |
Não | 93 | 88,6 | |
Tempo de Hemodiálise | |||
3 a 6 meses | 1 | 1,0 | |
7 a 12 meses | 6 | 5,7 | |
1 a 5 anos | 60 | 57,1 | |
mais de 5 anos | 38 | 36,2 |
Observou-se que a maioria dos participantes recebiam até um salário mínimo (83,8%) e quanto à escolaridade, 80% tinham até 08 anos de estudo. Foi possível evidenciar que o tempo de hemodiálise variou entre três meses e cinco anos e maior parte dos pacientes possuíam de 1 a 5 anos de tratamento (57,1%).
Em relação à QV, a consistência interna do Instrumento KDQOL-SF™ 1.3 foi testada através do coeficiente alfa de Cronbach, sendo encontrado o valor de 0,89, o que indica confiabilidade do instrumento para esta amostra.
A Tabela 2, apresenta a média, mediana, desvio-padrão e intervalo de confiança (95%) dos domínios contemplados pelo instrumento, tanto os gerais, quanto os específicos. Foi possível evidenciar que as dimensões mais afetadas estão relacionadas a situação de trabalho e função física, com médias de 14,8 e 43,1 respectivamente. Os domínios com maiores médias foram: Dor (75,6), Função Social (75,4), Função Cognitiva (86,4), e Função Sexual (86,6).
Domínios | Média (DP) | Mediana | IC95% |
---|---|---|---|
Geral | |||
Funcionamento físico | 59(27,7) | 60 | 53,6-64,3 |
Função Física | 43,1(39,1) | 50 | 35,5-50,7 |
Dor | 75,6(31,1) | 100 | 69,6-81,6 |
Saúde Geral | 53,9(18,1) | 55 | 50,4-57,4 |
Bem-estar emocional | 69,1(17,6) | 76 | 65,6-72,5 |
Função Emocional | 63,5(45,2) | 100 | 54,7-72,2 |
Função Social | 75,4(24,1) | 75 | 70,7-80,0 |
Energia/Fadiga | 67,1(18,5) | 70 | 63,5-70,7 |
Específicos | |||
Lista de sintomas/problemas | 82,9(12,0) | 85,42 | 80,6-85,2 |
Efeitos da doença renal | 76,1(18,5) | 81,25 | 72,5-79,7 |
Carga da doença renal | 48,4(28,2) | 50 | 42,9-53,8 |
Situação de trabalho | 14,8(28,5) | 0 | 9,2-20,3 |
Função cognitiva | 86,4(18,0) | 93,33 | 82,9-89,9 |
Qualidade da interação social | 80,5(16,9) | 80 | 77,2-83,8 |
Função Sexual | 86,6(21,9) | 100 | 80,5-92,6 |
Sono | 69,0(24,0) | 75 | 64,3-73,6 |
Suporte Social | 77,6(32,4) | 100 | 71,3-83,9 |
Incentivo da equipe de diálise | 78,1(22,9) | 75 | 73,7-82,5 |
Satisfação do paciente | 65,2(21,4) | 66,67 | 61,1-69,4 |
Através do teste Shapiro-Wilk foram determinados os domínios que apresentaram distribuição não assimétrica: carga da doença renal, funcionamento físico, função emocional e SF12 - componente físico; e os domínios que apresentaram distribuição assimétrica: lista de sintomas e problemas, efeitos da doença renal, situação de trabalho, função cognitiva, qualidade da interação social, função sexual, sono, suporte social, incentivo da equipe de diálise, satisfação do paciente, função física, dor, saúde geral, bem-estar emocional, função social, energia e fadiga e SF12 - componente mental.
A análise comparativa entre as variáveis sociodemográficas e os domínios do KDQOL-SF™ 1.3 está disposta nas Tabelas 3 e 4. Foram encontradas diferenças significativas entre as médias de qualidade de vida para cada sexo, sendo que os valores maiores são do sexo masculino tanto no domínio bem-estar emocional quanto no SF-12 componente mental (Tabela 3).
Domínios KDQOL-SF™ 1.3 | Sexo | Idade | |||
---|---|---|---|---|---|
Feminino | Masculino | Adulto | Idoso | p-valor | |
Lista de sintomas e problemas | 81,4 | 84,0 | 83,4 | 81,6 | 0,6403* |
Efeitos da doença renal | 75,8 | 76,4 | 75,0 | 78,6 | 0,3682* |
Carga da doença renal | 52,2 | 45,5 | 50,8 | 43,0 | 0,193** |
Situação de trabalho | 10,0 | 18,3 | 17,1 | 9,4 | 0,1895* |
Função cognitiva | 83,6 | 88,6 | 88,0 | 82,7 | 0,1451* |
Qualidade da interação social | 81,0 | 80,1 | 79,5 | 82,7 | 0,4745* |
Função sexual | 81,8 | 89,9 | 87,5 | 83,3 | 0,2672* |
Sono | 64,8 | 72,1 | 68,4 | 70,4 | 0,686* |
Suporte social | 76,3 | 78,6 | 79,9 | 72,4 | 0,5084* |
Incentivo da equipe de diálise | 78,1 | 78,1 | 78,8 | 76,6 | 0,7274* |
Satisfação do paciente | 68,5 | 62,8 | 66,4 | 62,5 | 0,3706* |
Funcionamento físico | 59,0 | 59,0 | 62,9 | 50,2 | 0,0295** |
Função física | 41,1 | 44,6 | 42,1 | 45,3 | 0,5925* |
Dor | 71,7 | 78,6 | 73,9 | 79,6 | 0,2525* |
Saúde geral | 52,9 | 54,7 | 53,4 | 55,2 | 0,8446* |
Bem-estar emocional | 64,6 | 72,4 | 67,2 | 73,3 | 0,0963* |
Função emocional | 54,1 | 70,6 | 62,1 | 66,7 | 0,6358** |
Função social | 72,2 | 77,7 | 76,4 | 73,0 | 0,4184* |
Energia e fadiga | 66,0 | 67,9 | 68,2 | 64,7 | 0,6873* |
SF12 - Componente físico | 40,5 | 40,6 | 41,1 | 39,2 | 0,3992** |
SF12 - Componente mental | 46,4 | 51,4 | 48,8 | 50,4 | 0,4863* |
* Mann – Whitney | |||||
**Teste t de Student |
Domínios KDQOL-SF™ 1.3 | Anos de estudo | Trabalho | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
< 8 anos | > 8 anos | p-valor | Sim | Não | p-valor | |
Lista de sintomas e problemas | 81,9 | 86,7 | 0,1262* | 90,5 | 81,9 | 0.0107* |
Efeitos da doença renal | 76,8 | 73,4 | 0,4675* | 81,0 | 75,5 | 0.5315* |
Carga da doença renal | 46,7 | 55,4 | 0,2070** | 55,2 | 47,5 | 0.3759** |
Situação de trabalho | 14,3 | 16,7 | 0,9141* | 66,7 | 8,1 | <0.0001* |
Função cognitiva | 85,8 | 88,9 | 0,3937* | 93,3 | 85,5 | 0.0872* |
Qualidade da interação social | 81,4 | 76,8 | 0,3877* | 81,7 | 80,4 | 0.9673* |
Função sexual | 86,6 | 86,1 | 0,6529* | 89,1 | 86,1 | 0.9765* |
Sono | 67,4 | 75,2 | 0,2530* | 74,4 | 68,3 | 0.5930* |
Suporte social | 75,2 | 87,3 | 0,3117* | 86,1 | 76,5 | 0.3560* |
Incentivo da equipe de diálise | 76,3 | 85,1 | 0,1270* | 75,0 | 78,5 | 0.3768* |
Satisfação do paciente | 63,7 | 71,4 | 0,0917* | 73,6 | 64,2 | 0.1679* |
Funcionamento físico | 57,0 | 66,9 | 0,1443** | 80,8 | 56,2 | 0.0033** |
Função física | 42,3 | 46,4 | 0,8041* | 56,3 | 41,4 | 0.2340* |
Dor | 76,6 | 71,8 | 0,4922* | 87,3 | 74,1 | 0.2221* |
Saúde geral | 53,3 | 56,2 | 0,5404* | 64,6 | 52,5 | 0.0181* |
Bem-estar emocional | 69,3 | 68,2 | 0,6117* | 74,3 | 68,4 | 0.6089* |
Função emocional | 63,9 | 61,9 | 0,8582** | 83,3 | 60,9 | 0.1063** |
Função social | 73,4 | 83,3 | 0,0575* | 78,1 | 75,0 | 0.6925* |
Energia e fadiga | 66,1 | 71,2 | 0,3843* | 77,5 | 65,8 | 0.0343* |
SF12 - Componente físico | 40,1 | 42,0 | 0,4457** | 47,7 | 39,6 | 0.0081** |
SF12 - Componente mental | 49,2 | 49,4 | 0,8225* | 51,6 | 49,0 | 0.3412* |
* Mann - Whitney | ||||||
**Teste t de Student |
Com relação à idade, os adultos apresentaram uma maior média no domínio funcionamento físico, sendo significativa a diferença. E quanto aos anos de estudo, não houve nenhuma diferença significativa na comparação entre os valores para essa variável.
Analisando-se a qualidade de vida entre os participantes que trabalham e os que não trabalham, foram identificadas diferenças significativas nos domínios: lista de sintomas e problemas, situação de trabalho, funcionamento físico, saúde geral, energia e fadiga e SF-12 componente físico. Em todos estes, os participantes que possuem trabalho apresentaram maior média de qualidade de vida (Tabela 4).
Para o tempo de hemodiálise e a renda foi realizado o teste de Correlação de Spearman, apresentando como significativo apenas o valor de r= -0.3664 entre função sexual e tempo de hemodiálise. Esse valor indica uma proporcionalidade inversa, ou seja, quanto maior o tempo de hemodiálise menor a qualidade de vida para o domínio analisado (Tabela 5).
Domínios KDQOL-SF™ 1.3 | Tempo de Hemodiálise | Renda | ||
---|---|---|---|---|
r | p-valor | r | p-valor | |
Lista de sintomas e problemas | -0.0209 | 0.8328 | 0.0154 | 0.8758 |
Efeitos da doença renal | 0.0574 | 0.5605 | 0.0072 | 0.9416 |
Carga da doença renal | -0.0512 | 0.6040 | 0.0684 | 0.4880 |
Situação de trabalho | -0.0700 | 0.4782 | 0.1117 | 0.2565 |
Função cognitiva | 0.0946 | 0.3372 | 0.1279 | 0.1936 |
Qualidade da interação social | 0.0460 | 0.6411 | 0.1092 | 0.2676 |
Função sexual | -0.3664 | 0.0070 | 0.1512 | 0.2799 |
Sono | -0.0521 | 0.5977 | 0.1089 | 0.2687 |
Suporte social | -0.1665 | 0.0896 | -0.0435 | 0.6596 |
Incentivo da equipe de diálise | -0.0909 | 0.3566 | 0.1850 | 0.0589 |
Satisfação do paciente | -0.0839 | 0.3950 | 0.0987 | 0.3166 |
Funcionamento físico | -0.0132 | 0.8934 | 0.0886 | 0.3685 |
Função física | 0.0743 | 0.4514 | 0.1450 | 0.1399 |
Dor | 0.0237 | 0.8100 | 0.0844 | 0.3920 |
Saúde geral | -0.0192 | 0.8457 | 0.1432 | 0.1451 |
Bem-estar emocional | 0.1414 | 0.1501 | -0.0358 | 0.7168 |
Função emocional | 0.1372 | 0.1628 | 0.1452 | 0.1393 |
Função social | 0.0891 | 0.3659 | -0.0191 | 0.8464 |
Energia e fadiga | 0.0384 | 0.6973 | -0.0400 | 0.6851 |
SF12 - Componente físico | -0.0751 | 0.4463 | 0.1247 | 0.2050 |
SF12 - Componente mental | 0.1687 | 0.0854 | -0.0036 | 0.9709 |
DISCUSSÃO
O perfil da amostra é formado predominantemente por homens, adultos, casados, com menos de oito anos de estudo e que não exerciam nenhuma atividade laboral. Características semelhantes foram relatadas por estudos realizados em diversas localidades do Brasil e também em outros países como Chile, Arábia Saudita e México6,11,13-21.
Os resultados obtidos nesse estudo com relação aos escores de qualidade de vida do KDQOL-SF™ 1.3 também apresentaram concordância com a literatura6,12-14,18,22. Os domínios com maior pontuação foram função sexual e função cognitiva e os domínios que apresentaram as pontuações mais baixas foram situação de trabalho e função física.
Em relação às diferenças de escores entre os sexos, os homens apresentaram uma maior qualidade de vida em comparação às mulheres no domínio bem-estar emocional e no SF-12 componente mental. Estudos referem uma maior tendência do sexo feminino a possuir níveis mais comprometidos de QV devido a determinantes clínicos, psicológicos e sociais, como propensão a anemia, ansiedade e depressão11,15-17.
O papel ocupado culturalmente pelas mulheres na dinâmica familiar também é um fator determinante, pois há a responsabilidade de cuidar da casa e da família e as limitações impostas pela doença e tratamento podem impossibilitar a realização dessa função, o que acarreta em prejuízos emocionais e problemas psicológicos6. Também pode-se considerar que muitas mulheres não deixam de exercer suas ocupações tradicionais, o que pode favorecer a sobrecarga com uma maior carga de estresse físico e mental e consequentemente, diminuição da qualidade de vida11,16,17.
Além disso, a mulher realiza comumente o papel de cuidadora no seio familiar e diante do seu adoecimento, muitas vezes não possui suporte social pois nem sempre os demais membros da família conseguem se reorganizar e assumir essa função de apoio16.
Com relação à idade, os adultos apresentaram maior QV no domínio funcionamento físico em comparação com os idosos, sendo significativa a diferença (p= 0,0295). Um estudo realizado com 101 pacientes em hemodiálise da cidade de São Carlos – SP, verificou através de análise de regressão logística uma proporção inversa entre idade e esse domínio, sendo que o risco de prejuízo na QV aumentava quanto maior era a idade23.
A idade avançada exerce influência relevante na percepção de qualidade de vida e indivíduos mais velhos constituem um grupo vulnerável à degeneração das condições físicas e funcionais15. O idoso em hemodiálise pode possuir um número grande de comorbidades, maior necessidade de hospitalização, fazer uso de muitos medicamentos e apresentar com maior frequência complicações durante as sessões de hemodiálise. Com a progressão da doença pode apresentar dificuldades físicas e comprometimento da autonomia, afetando os níveis de vitalidade e QV6,16.
Um aspecto relevante desse estudo diz respeito à qualidade de vida significativamente maior dos indivíduos que possuem algum trabalho remunerado, verificada em cinco domínios e no SF-12 componente físico. Esses resultados mostram um problema relacionado à vida profissional prejudicada, pois apenas 11,4% dos pacientes realizam atividades remuneradas e apresentaram uma diferença exorbitante nos escores do domínio “situação de trabalho” em comparação com o outro grupo.
Isso pode ser explicado através da dificuldade que as pessoas em terapia hemodialítica possuem em estabelecer e/ou manter um vínculo de trabalho por conta do tempo dedicado ao tratamento e a rotina imposta pelo mesmo, assim como a redução do desempenho físico e presença de sintomas como indisposição, fraqueza e mal-estar geral que interferem nas atividades diárias e profissionais6,11,12,18. O desemprego somado às limitações físicas contribui à carga atribuída à doença renal, afetando também o lado psicoemocional e a interação social, principalmente se o paciente assume um papel de principal provedor da família ou chefe do lar15.
Nesse ínterim, mesmo aumentando a sobrevida do renal crônico, a hemodiálise causa diversas alterações no dia a dia dessas pessoas, favorecendo um comprometimento social, físico, mental e emocional24. Entretanto, mesmo com dificuldades, os doentes renais não ficam totalmente impossibilitados de realizar tarefas, podendo planejar atividades com auxílio de profissionais11.
As pessoas inativas ou sem atividade profissional devido às limitações físicas geralmente são dependentes da previdência social e com isso possuem um baixo poder aquisitivo, o que pode estar associado a níveis mais baixos de QV15. Contudo, não verificou-se correlação estatisticamente significativa entre renda e os domínios do KDQOL-SF™ 1.3, dessa forma, não se pode considerar que esse fator influencie diretamente na QV para a população estudada.
Também não houve resultado significativo quanto aos anos de estudo; mas, pessoas com mais de oito anos de escolaridade apresentaram escores mais elevados de QV em um estudo realizado com 763 pacientes no Chile15. Alguns autores se referem à escolaridade como um fator importante, pois se relaciona com a qualidade das informações recebidas pelo paciente e a capacidade de assimilação, de forma que, quanto maior a escolaridade, maior o entendimento do indivíduo a respeito de sua saúde, de seu tratamento e das limitações que causam em sua vida6,11.
Verificou-se uma correlação negativa (r= -0.3664; p=0.007) entre tempo de hemodiálise e “Função sexual”, indicando que a qualidade de vida relacionada a este domínio diminui à medida que aumenta o tempo de tratamento. Esse domínio é composto por dois itens “tem problema em ter satisfação sexual” e “tem problema para ficar sexualmente excitado”. A interação sexual é de extrema importância para a qualidade de vida dos indivíduos e se torna um dos problemas decorrentes das perdas e dificuldades impostas pela doença e a terapia6.
Em um estudo realizado no México, com 64 pacientes em hemodiálise, a falta de atenção e apoio de amigos e familiares com as complicações da doença e o tratamento se configurou como o principal fator determinante na redução da autoestima e da qualidade de vida. Dessa forma, percebe-se que o apoio familiar é fundamental e se torna a chave principal no processo de adaptação do renal crônico ao tratamento hemodialítico, no qual há um enfrentamento da nova situação deixando de lado emoções negativas e ansiedades21.
Diante do exposto, sabe-se que a doença renal crônica e a hemodiálise causa grandes alterações na vida dos pacientes e de seus familiares e os fatores sociodemográficos exercem representativa interferência na qualidade de vida6,13. Por isso, identificar associações entre esses aspectos fornece um auxílio na assistência dessa população subsidiando novas estratégias que contribuam com a melhoria dos níveis de QV13,23.
Vale ressaltar que a terapia ocupacional é uma estratégia extremamente benéfica para os pacientes que possuem dificuldade em realizar atividades e com autonomia reduzida. É uma intervenção que pode ser realizada por profissionais de saúde e que promove um sentimento de empoderamento no indivíduo em relação a si próprio, melhorando a função emocional e a qualidade de vida22.
A equipe de enfermagem deve estar preparada para ter um cuidado mais específico, com adequado planejamento da assistência de acordo com as fragilidades, visando garantir maior conforto e segurança, potencializando resultados e minimizando riscos13,24. É necessário que os profissionais estabeleçam uma relação de afetividade e confiança com o paciente para que seja possível conhecer suas dificuldades e medos e a partir disso estimular suas capacidades de adaptação ao um novo estilo de vida6,24.
Vale ressaltar que, por ser uma doença complexa e bastante impactante nos diversos segmentos da vida dos indivíduos, a análise da QV e seus componentes e as relações que possuem com a DRC proporciona grandes avanços para a literatura na área. Assim, é importante que mais pesquisas sejam realizadas com esse tipo de população, pois favorecem a compreensão e o manejo de aspectos que aumentam ou diminuem a QV.
O presente estudo apresentou limitações, pelo fato de não ter sido realizado o levantamento de dados laboratoriais que também podem interferir na QV e ser limitado a uma localidade com apenas um centro especializado em terapia renal substitutiva.
CONCLUSÕES
Observou-se no presente estudo que as variáveis sexo, idade, ocupação e tempo de tratamento interferem na qualidade de vida dos renais crônicos em terapia hemodialítica. Esses fatores devem ser considerados durante a prestação de cuidados a esses pacientes.
Dessa forma, pode-se afirmar que a utilização de instrumentos capazes de mensurar a qualidade de vida é bastante útil, sendo o KDQOL-SF™ 1.3 uma ferramenta de fácil acesso e baixo custo que permite o conhecimento dos déficits de qualidade de vida e a partir disso, a construção de uma assistência de enfermagem direcionada às necessidades desta população.