INTRODUÇÃO
O Brasil é constituído por uma pluralidade populacional e cultural que é constantemente evidenciada em estudos de aspectos sociais e antropológicos. Apesar do país ser constituído, em sua maioria, por habitantes que possuem descendência negra africana, é evidenciada a supressão dos seus valores étnicos e culturais, tornando-os meros coadjuvantes na sociedade na qual o direito a exercer a cidadania nem sempre é respeitado1.
Entre a população negra destacam-se as comunidades quilombolas, em decorrência das disparidades socioeconômicas e localização majoritariamente rural2. Tais comunidades são definidas pela particularidade quanto à trajetória histórica associado às relações territoriais próprias e a presunção de ancestralidade negra que possui ligação à resistência, à violência, perseguição e dominação histórica sofrida3.
Os quilombos estão presentes em diversos estados brasileiros e, em números, são certificados pela Fundação Cultural Palmares2.040 comunidades, sendo 63% delas no nordeste. Estima-se que no Brasil há 214 mil famílias e 1,17 milhões de quilombolas4. Com base nestes dados, certifica-se que a identidade desse povo está diretamente relacionada ao contexto cultural, geográfico e social no qual está inserido.
As comunidades quilombolas perpassam, ao longo dos anos, por questões que vão das vulnerabilidades à luta pelo reconhecimento étnico-cultural e histórico. Dentre os diversos problemas presentes destacam-se: o preconceito racial, perdas de territórios em detrimento de ocupações irregulares, desmatamento e perdas de recursos naturais pelo avanço de indústrias e construções de rodovias, renda familiar insuficiente, pobreza extrema e serviço de saúde ineficaz1.
Essas comunidades, entre outras do meio rural, quando comparadas com a população urbana, estão em condições de saúde mais precárias. Isto ocorre por conta do isolamento geográfico, das limitações de acesso e da falta de qualidade no serviço quando este é prestado4. Como consequência deste problema, para que as pessoas consigam tratar suas enfermidades, são obrigadas a buscar pelo serviço de saúde em lugares mais distantes5.
Apesar do avanço de recursos disponibilizados na Atenção Primária à Saúde, com o aumento da cobertura assistencial da Estratégia Saúde da Família (ESF), as comunidades quilombolas ainda não foram contempladas de maneira expressiva2. Mesmo com o avanço de pesquisas voltadas para estas comunidades ainda pouco se discute no âmbito da saúde sobre a sua situação6.
Ressalta-se que a transição epidemiológica tem afetado o perfil de doenças da população em estudo, como é o caso das doenças crônicas, que se caracterizam por apresentar um maior tempo de latência, poucos sintomas iniciais, fatores de risco associados e especificidades2.
No intuito de conhecer melhor esse problema em nosso estado definiu-se como objetivos deste estudo: Traçar o perfil sociodemográfico e epidemiológico da comunidade quilombola Abacatal/Aurá e identificar aspectos socioeconômicos capazes de repercutir na condição de saúde dessas pessoas.
MATERIAIS E MÉTODOS
Estudo epidemiológico transversal, com abordagem quantitativa que seguiu as diretrizes do Strobe Statement7. Foi realizado na comunidade quilombola Abacatal/Aurá situada e sob jurisdição do município de Ananindeua, na área metropolitana de Belém, Pará, Brasil. Está localizada há oito quilômetros da sede do município e posicionada às margens do igarapé Uriboquinha, que desemboca no Rio Guamá.
A população do estudo foi de 328 participantes entre homens e mulheres, residentes na comunidade e cadastrados na ESF do Jardim Japonês. Considerando esse total calculou-se o valor do n amostral admitindo percentual de confiança de 95% e erro de 5%. Após o cálculo, o n amostral foi composto inicialmente por 130 adultos.
O método para seleção das participantes foi por amostragem aleatória simples.A amostra é significativa (p<0.05), considerando que do total de 328 pessoas registradas, 130 (39,63%) compuseram a amostra probabilistica e esta proporção varia no intervalo de confiança (95%) entre 34,3% e 44,9%. Incluiu-se homens e mulheres com 18 anos ou mais, de origem quilombola ou residentes na comunidade e cadastrados na ESF. Foram excluídos aqueles que, mesmo atendendo aos critérios de inclusão, não foram encontrados em seus domicílios após duas tentativas no período de coleta de dados.
Inicialmente o projeto foi apresentado à equipe da ESF, a fim de pedir sua colaboração, uma vez que estes desempenham o cuidado em saúde da comunidade. Em seguida, com o apoio da presidente da Associação de Moradores de Abacatal/Aurá, reuniu-se com os moradores na Sede de Associação para que pudessem conhecer o projeto e, nessa ocasião, todos foram convidados a participar do estudo.
Os dados foram coletados em novembro de 2017, por entrevista no domicilio com aplicação do instrumento de coleta de dados pelos próprios pesquisadores. Este foi adaptado a partir de questionário utilizado em outro estudo8, desenvolvido no âmbito do Grupo de Estudos de Agravos em Populações Tradicionais da Amazônia – GEAPA, da Universidade do Estado do Pará, Brasil, do qual os pesquisados fazem parte. O instrumento continha 45 perguntas fechadas, referentes a aspectos socioeconômicos, culturais, saúde, alimentação e estilo de vida.
Os dados foram analisados por meio do processamento no sistema Microsoft Excel e Statistic Package for Social Sciences (SPSS) versão 22.0. Utilizou-se estatística descritiva e teste não paramétrico Qui-quadrado de Pearson, teste de hipóteses que se destina a verificar se há tendência/correlação significativa ou não na ocorrência de determinados fatos, mensurados de forma nominal, simbolizado por χ2 admitindo-se significância de p-valor < 0.05.
O estudo atendeu a Resolução 466/12, foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Pará, Brasil, parecer n° 2.279.853 e iniciou após a autorização da presidente da Associação de Moradores da comunidade quilombola. A todos os participantes foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para esclarecimentos sobre a pesquisa e manifestação de seu aceite por escrito.
RESULTADOS
Verifica-se na Tabela 1, maior frequência da faixa etária de 18 e 29 anos (39,23%), com predomínio de pessoas negras (81,54%), sexo feminino (67,69%), com escolaridade fundamental incompleto (51,54%), moradia própria (97,69%), com 4 a 6 cômodos na residência (66,92%) e construção em alvenaria (82,31%). Predominou a renda familiar de até 1 salário mínimo (57,69%) e de 1 a 5 pessoas (78,46 %) residindo no imóvel.
Perfil Socioeconômico e Cultural | Frequência | Percentual (%) | P-valor |
---|---|---|---|
Faixa Etária | |||
18-29 | 51 | 39,23 | <0.0001** |
30-41 | 25 | 19,23 | |
42-53 | 26 | 20,00 | |
54-65 | 17 | 13,08 | |
66-89 | 11 | 8,46 | |
Cor | |||
Pardo | 24 | 18,46 | <0.0001** |
Negro | 106 | 81,54 | |
Sexo | |||
Feminino | 88 | 67,69 | <0.0001** |
Masculino | 42 | 32,31 | |
Escolaridade | |||
Fundamental Completo | 2 | 1,54 | <0.0001** |
Fundamental Incompleto | 67 | 51,54 | |
Médio Completo | 17 | 13,08 | |
Médio Incompleto | 16 | 12,31 | |
Superior Completo | 8 | 6,15 | |
Superior Incompleto | 11 | 8,46 | |
Sem escolaridade | 9 | 6,92 | |
Moradia | |||
Própria | 128 | 98,46 | <0.0001** |
Cedida | 2 | 1,54 | |
N° de cômodos da casa | |||
Até 3 cômodos | 31 | 23,85 | <0.0001** |
4 a 6 cômodos | 87 | 66,92 | |
Acima de 6 cômodos | 12 | 9,23 | |
Característica da moradia | |||
Alvenaria | 107 | 82,31 | <0.0001** |
Madeira | 21 | 16,15 | |
Barro | 2 | 1,54 | |
Quantas pessoas residem | |||
1-5 | 102 | 78,46 | <0.0001** |
6-10 | 24 | 18,46 | |
11-15 | 4 | 3,08 | |
Renda familiar *** | |||
Até 1salário mínimo | 75 | 57,69 | <0.0001** |
2 salários mínimos | 40 | 30,77 | |
3 salários mínimos ou mais | 15 | 11,54 | |
Abastecimento de água | |||
Poço raso/água não tratada | 55 | 42,31 | <0.0001** |
Poço artesiano/água não tratada | 72 | 55,38 | |
Direto do igarapé/água não tratada | 3 | 2,31 | |
Escoamento de dejetos sólidos e líquidos | |||
Fossa rudimentar | 3 | 2,31 | <0.0001** |
Fossa séptica | 86 | 66,15 | |
Banheiro no fundo do quintal | 41 | 31,54 | |
Destino do lixo | |||
Jogado a céu aberto | 4 | 3,08 | <0.0001** |
Incinerado | 121 | 93,08 | |
Enterrado/reciclado | 7 | 5,39 | |
Energia elétrica | |||
Gerador | 4 | 3,08 | <0.0001** |
Rede elétrica | 125 | 96,15 | |
Sem energia | 1 | 0,77 | |
Possui atividade econômica | |||
Sim | 88 | 67,69 | <0.0001** |
Não | 42 | 32,31 | |
Quantidade de pessoas na residência que trabalham | |||
Nenhuma | 7 | 5,38 | <0.0001** |
Apenas 1 pessoa | 45 | 34,62 | |
2 a 3 pessoas | 66 | 50,77 | |
4 ou mais pessoas | 12 | 9,23 |
** α:<0,05; *** Valor de referência Salário mínimo R$ 935,00.
Fonte: Dados organizados pelos autores, Brasil, 2017.
A principal fonte de abastecimento de água é o poço artesiano/água não tratada (55,38%). O escoamento de dejetos sólidos e líquidos ocorre por meio da fossa séptica (66,15%), (93,08%) incineram o lixo. A rede elétrica é a principal fonte de energia elétrica (96,15%), a maioria das pessoas (67,69%) exerce atividade econômica e em 66 (50,77%) famílias entre 2 e 3 pessoas exercem atividade econômica.
Apresenta-se na Tabela 2, os aspectos sobre a saúde da comunidade. Verificou-se que a maioria já utilizou os serviços de saúde da ESF Jardim Japonês (90,77%), sendo que os principais motivos foram consulta de rotina (15,29%), algum tipo de dor (15,29%) e realização de exames (11,76%). Avaliam seu estado de saúde como regular (53,85%), sendo esta uma tendência entre as pessoas da comunidade. A dor articular foi a principal alteração de saúde relatada (51,54%).
Aspectos sobre a saúde | Frequência | Percentual (%) | P-valor |
---|---|---|---|
Já utilizou os serviços de saúde da ESF Jardim Japonês | |||
Sim | 118 | 90,77 | <0.0001** |
Não | 12 | 9,23 | |
Motivo | |||
Consulta de rotina | 13 | 16,25 | <0.0001** |
Dor | 13 | 16,25 | |
Exames | 10 | 12,50 | |
Odontológico | 7 | 8,75 | |
Diabete | 5 | 6,25 | |
Gestação | 5 | 6,25 | |
Gripe | 5 | 6,25 | |
Acompanhamento de quadro patológico | 4 | 5,00 | |
Hipertensão arterial sistêmica | 3 | 3,75 | |
Picada/mordida de animais | 3 | 3,75 | |
Quadro alérgico/asma | 3 | 3,75 | |
Gastrite | 3 | 3,75 | |
Acidente/causa externa | 2 | 2,50 | |
Sinusite | 1 | 1,25 | |
Dermatológico | 1 | 1,25 | |
Oftalmologista | 1 | 1,25 | |
Febre | 1 | 1,25 | |
Como você avalia o seu estado de saúde | |||
Muito bom | 5 | 3,85 | <0.0001** |
Bom | 47 | 36,15 | |
Regular | 70 | 53,85 | |
Ruim | 8 | 6,15 | |
Possui alguma alteração de saúde atualmente | |||
Nenhuma | 13 | 10,00 | <0.0001** |
Hipertensão arterial sistêmica | 19 | 14,62 | |
Diabetes | 7 | 5,38 | |
Gastrite | 27 | 20,77 | |
Dores Articulares | 67 | 51,54 | |
Alergia | 40 | 30,77 | |
Asma/bronquite | 15 | 11,54 | |
Hanseníase | 2 | 1,54 | |
Depressão | 1 | 0,77 | |
Obstipação | 13 | 10,00 | |
Outras alterações | 45 | 34,62 | |
O que você procura quando está doente? | |||
Estratégia Saúde da Família Jardim Japonês | 19 | 14,62 | <0.0001** |
Hospital | 50 | 38,46 | |
Farmácia | 58 | 44,62 | |
Outros (remédio caseiro) | 52 | 40,00 | |
Quando foi a última vez que você foi ao serviço de saúde | |||
No último mês | 43 | 33,08 | <0.0001** |
Nos últimos seis meses | 45 | 34,62 | |
Nos últimos doze meses | 26 | 20,00 | |
Há dois anos | 8 | 6,15 | |
Há três anos ou mais | 7 | 5,38 | |
Nunca procurou | 1 | 0,77 | |
Qual a frequência que os profissionais de saúde visitam sua casa | |||
Uma vez por mês | 32 | 24,62 | <0.0001** |
A cada dois meses | 8 | 6,15 | |
Ua vez por ano | 15 | 11,54 | |
Nunca recebeu visita | 75 | 57,69 | |
Utiliza ervas para tratamento de alguma doença? | |||
Sim | 117 | 90,00 | <0.0001** |
Não | 13 | 10,00 |
** α:<0,05
Fonte: Dados organizados pelos autores, Brasil, 2017.
Verificou-se que 44,62% procura farmácia quando está doente e 40% procuram outros meios, sendo que todos estes recorreram ao remédio caseiro. Quanto a última vez que procurou o serviço de saúde (34,62%) declarou que o fez nos últimos seis meses. A maior parte nunca recebeu visita dos profissionais de saúde na sua casa 57,69% e 90% já utilizou ervas para tratamento de alguma doença.
Na Tabela 3, demonstra-se que (53,85%) das pessoas se alimentam até três vezes ao dia. O consumo de frutas predomina em duas vezes por semana (30,77%) e o de legumes e verduras uma vez por semana (36,15%). Sobre o consumo de açaí e/ou bacaba, constatou-se que 50% das pessoas consomem estes frutos até quatro vezes por semana. A principal fonte da água para consumo doméstico é o poço artesiano (98,46%).
Aspectos sobre a alimentação e estilo de vida | Frequência | Percentual (%) | P-valor |
---|---|---|---|
Quantas vezes você se alimenta por dia? | |||
6 ou mais vezes ao dia | 5 | 3,85 | <0.0001** |
5 a 4 vezes ao dia | 55 | 42,31 | |
3 ou menos vezes ao dia | 70 | 53,85 | |
Você consome frutas quantas vezes por semana? | |||
Não come frutas | 4 | 3,08 | <0.0001** |
Uma vez por semana | 34 | 26,15 | |
Duas vezes por semana | 40 | 30,77 | |
Três a Quatro vezes por semana | 30 | 23,08 | |
Cinco a Seis vezes por semana | 2 | 1,54 | |
Diariamente | 20 | 15,38 | |
Você consome legumes e verduras quantas vezes por semana? | |||
Não come legumes e nem verduras | 6 | 4,62 | <0.0001** |
Uma vez por semana | 47 | 36,15 | |
Duas vezes por semana | 37 | 28,46 | |
Três a Quatro vezes por semana | 24 | 18,46 | |
Cinco a Seis vezes por semana | 5 | 3,85 | |
Diariamente | 11 | 8,46 | |
Você consome Açaí e/ou Bacaba quantas vezes por semana? | |||
Todos os dias | 30 | 23,08 | <0.0001** |
6 a 5 vezes | 28 | 21,54 | |
4 a 3 vezes | 36 | 27,69 | |
2 a 1 vezes | 34 | 26,15 | |
Não consome | 2 | 1,54 | |
A água para consumo doméstico (cozinhar e beber) vem de onde? | |||
Poço | 128 | 98,46 | <0.0001** |
Do igarapé com tratamento (cloro) | 2 | 1,54 | |
Você fuma ou já fumou? | |||
Sim | 57 | 43,85 | 0.1345ns |
Não | 73 | 56,15 | |
Tempo de fumo (anos) | n = 57 | 43,85 | |
1-10 | 23 | 41,07 | 0.0036** |
11-20 | 10 | 17,86 | |
21-30 | 12 | 21,43 | |
31-40 ou mais | 12 | 21,43 | |
Você consume ou já consumiu bebida alcoólica? | |||
Sim | 107 | 82,31 | <0.0001** |
Não | 23 | 17,69 | |
Você já fez ou faz uso de entorpecente/drogas? | |||
Sim | 6 | 4,62 | <0.0001** |
Não | 124 | 95,38 | |
Pratica atividade física | |||
Não faz/Não pode | 78 | 60,00 | <0.0001** |
1x na semana | 12 | 9,23 | |
2 a 3x na semana | 29 | 22,31 | |
Diariamente | 11 | 8,46 | |
Qual atividade física é praticada? | |||
Caminhada | 7 | 13,46 | <0.0001** |
Futebol | 45 | 86,54 |
** α:<0,05.
Fonte: Dados organizados pelos autores, Brasil, 2017.
A maioria declarou não fumar (56,15%), mas dentre os fumantes, destacou-se o predomínio naqueles com 1 a 10 anos de uso (41,07%). Quanto ao uso de drogas licitas ou ilícitas predominou o uso de álcool (82,31%). A maioria não pratica ou não pode praticar atividade física (60%) e apenas (22,1%) o fazem, sendo o futebol, a principal atividade (34,62%).
DISCUSSÃO
Identificou-se que a faixa etária com maior frequência foi de 18 a 29 anos e o predomínio do sexo feminino coincide com os encontrados em outros estudos realizados em comunidades quilombolas6,9-10. Vale ressaltar que o percentual de pessoas que se autodeclarou negro foi maior do que o registrado no Brasil (7,6%) e no Pará (7,2%) segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)11.
No contexto educacional identificou-se baixo índice de escolaridade, pois predominou o ensino fundamental incompleto. Em outras pesquisas foram também observadas baixas taxas de escolaridade entre quilombolas5,12-13. Ressalta-se que a comunidade conta apenas com uma escola municipal de ensino fundamental, obrigando aqueles que decidem continuar os estudos a se deslocar para escolas de ensino médio no centro urbano de Ananindeua/PA. O transporte se faz em ônibus escolar cedido pelo Município, em precárias condições de uso colocando em risco a segurança dessas pessoas, o que pode contribuir para a baixa procura pela continuidade dos estudos.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o índice de analfabetismo no país vem reduzindo tanto no meio urbano como rural. Entretanto, a falta de escolaridade ainda é mais alta na zona rural11. O estudo evidenciou baixo índice de pessoas que não possuem escolaridade, no entanto no Brasil o número de quilombolas que não sabem ler ainda é relativamente alto (24,81%)4.
A predominância de renda familiar de até um salário mínimo evidencia que a baixa escolaridade pode ser um dos fatores de influência na busca por empregos de baixa remuneração e que, consequentemente, interfere no rendimento familiar. Destaca-se que o percentual de pessoas sem atividade econômica e o reduzido quantitativo de famílias em que duas ou três pessoas trabalham, indica que a renda de apenas um salário mínimo seja insuficiente para sustentar uma família e, por conseguinte, proporcionar melhora na qualidade de vida dos moradores.
Salienta-se que 74,73% das famílias quilombolas estão abaixo da linha da extrema pobreza4 e esta baixa remuneração é um fator de influência na saúde da população, devido limitar o acesso aos serviços e ao uso da terra, a qual é uma característica essencial aos quilombolas12. O predomínio de casas de alvenaria e o maior n° de cômodos por domicílio aconteceu em decorrência do Programa Cheque Moradia que proporcionou melhorias na residência de várias famílias que se encontravam em situação de risco.
Apesar da comunidade se localizar a poucos quilômetros do centro urbano do município de Ananindeua e do avanço de condomínios habitacionais próximos, o sistema de distribuição de água por rede geral não atende ao Abacatal. O fornecimento de água por rede geral à população além de garantir melhor qualidade de vida, proporciona também conforto e acesso à água com melhor qualidade11.
Sabe-se que há diferença no fornecimento de água entre o meio rural e o meio urbano, visto que as principais formas de abastecimento de água na zona rural vêm de poços rasos, nascentes e córregos, tal como acontece na Comunidade Abacatal, sendo as mesmas fontes susceptíveis à contaminação14. No Brasil, a região Norte possui o pior percentual no abastecimento de água por rede geral, tanto nos domicílios urbanos (62,5%) como rurais (9,8%)11, enquanto que pouco mais da metade dos quilombolas no país não possuem água canalizada (55,21%)4.
Quanto à eliminação de dejetos sólidos e líquidos, ainda que a maioria dos domicílios possua fossa séptica, o uso da fossa rudimentar e do banheiro no fundo do quintal faz-se presente na comunidade. O descarte das fezes no meio ambiente propicia o aparecimento de vetores responsáveis por causar doenças parasitárias e endêmicas, tal como na degradação da água dos mananciais, podendo ocasionar prejuízos na qualidade da água consumida pela população5. Deste modo, a eliminação de dejetos no fundo do quintal é inapropriada, assim como os que são depositados na fossa rudimentar.
Outro problema sanitário que a pesquisa apontou foi o destino do lixo, pois predomina a incineração dos resíduos, coincidindo com outros estudos em comunidades quilombolas2,5,13,15. Embora a comunidade encontre-se próxima ao aterro sanitário do bairro do Aurá, responsável pelo recebimento do lixo produzido na região metropolitana de Belém, não há coleta regular do lixo e a sua incineração resulta em problemas de saúde e danos ao meio ambiente.
Observa-se que apesar do alto índice de pessoas que já utilizaram os serviços de saúde da ESF, o número de pessoas que a procuram quando estão doentes é baixo. Isto pode estar ocorrendo por conta do atendimento médico realizado na ESF ser disponibilizado para a comunidade apenas uma vez por semana, e consequentemente, a procura pelo hospital, farmácia e consumo de remédio caseiro é maior. Também o alto índice de pessoas que nunca receberam visitas de profissionais de saúde em suas residências pode interferir negativamente nessas escolhas.
Não há Agentes Comunitários de Saúde na ESF, situação constatada em pesquisa realizada em comunidades quilombolas de Vitória da Conquista na Bahia, onde 25,8% dos entrevistados nunca recebeu visita domiciliar de ACS13. De acordo com Campos et al16, a visita domiciliar é de fundamental importância para a observação do ambiente em que vive a comunidade e para compreender quais são as necessidades de saúde individuais e da família. Na comunidade Abacatal/Aurá a equipe estava incompleta e o posto de saúde da comunidade não possuía recursos adequados para o funcionamento do mesmo.
A falta de disponibilidade e de oferta de profissionais na atenção primária faz parte da realidade do Brasil. Além disso, as populações das regiões Norte e Nordeste contam com reduzido acesso aos serviços de saúde quando comparadas com as demais regiões do País17.
Quanto à avaliação dos participantes sobre o seu estado de saúde, a pesquisa mostrou que a maioria possui a autopercepção negativa, ou seja, “regular” e “ruim”, da sua saúde, tal como em outros estudos realizados com quilombolas2,9,18. Isto evidencia que os aspectos demográficos, socioeconômicos e a presença de doenças crônicas, são fatores que podem contribuir para a percepção negativa do estado atual de saúde dessa população2.
Em relação às alterações de saúde atuais, constatou-se que mais da metade da comunidade referiu dores articulares, o que pode estar relacionado às atividades de grande esforço que muitos realizam no cotidiano, como a agricultura e a carvoaria. Destaca-se que as ocupações profissionais que exigem mais esforço físico podem estar relacionadas à presença de doenças como a artrite/artrose e dor na coluna2. Além disso, as demais doenças referidas neste estudo foram também evidenciadas em outras pesquisas realizadas com quilombolas, como a Hipertensão Arterial Sistêmica5,10,15,19, Diabetes5,15, Depressão20, e a Epigastralgia19.
O uso de plantas para o tratamento de doenças, que predominou na comunidade, é uma prática comum identificada em estudos com outras comunidades quilombolas15,21-23. Esse alto índice na utilização de ervas e a alta variedade em suas aplicações revela a crença das populações quilombolas nas plantas como recurso para o tratamento de doenças, o que além de um fator cultural pode estar também influenciado pela carência atual na saúde pública21. Salienta-se que o conhecimento por parte da gestão em saúde acerca do que a pessoa procura quando está doente e dos recursos disponíveis para o seu tratamento é fundamental, pelo fato de permitir reconhecer as especificidades e necessidades das populações tradicionais, como é o caso dos quilombolas12.
Apesar da grande variedade de frutos e hortaliças na comunidade, observa-se que o seu consumo pelos moradores é muito baixo, pois os mesmos, muitas vezes vendem o que é produzido, e consequentemente, esses alimentos naturais são substituídos pelos alimentos industrializados. Outras pesquisas realizadas com quilombolas também constataram pouca ingestão de frutas, legumes e verduras6,24. Por outro lado, destaca-se que a maioria dos participantes consomem o açaí, uma fruta regional, quase todos os dias, constituindo-se como uma peculiaridade cultural que, de alguma forma, auxilia para suprir esse baixo consumo de frutos contribuindo com nutrientes nessa alimentação diária.
Identificou-se que há alto índice no consumo doméstico de água proveniente do poço, assim como em outros estudos em comunidades quilombolas5,15. Ressalta-se que o conhecimento desta situação é de suma importância, pois o não tratamento da água consumida pode implicar em condições negativas para a saúde, como é o caso das doenças parasitárias e infecciosas, comuns em populações quilombolas25. Dados atuais evidenciam que 1,4 bilhão de pessoas no mundo não possuem acesso à água potável, e, uma criança morre a cada 8 segundos por enfermidades que estão associadas com a contaminação da água, como é o caso da cólera e da desinteria14.
Constatou-se também elevado número de pessoas que consomem ou já consumiram bebidas alcoólicas, assim como em outras comunidades quilombolas2,19,26. O uso frequente do álcool configura como uma característica presente entre os quilombolas que envolvem gênero e geração26.
Identificou-se elevado percentual de fumantes na comunidade, acarretando riscos à saúde semelhante ao encontrados em outras pesquisas com quilombolas que também apresentaram doenças crônicas, como a Diabetes e a Hipertensão2,10,19. Em estudo realizado por Bezerra et al6, em uma comunidade quilombola na Bahia identificou-se maior prevalência de Hipertensão Arterial para os ex-fumantes e os atuais fumantes ao se comparar com as pessoas que nunca fumaram.
Em relação à prática de atividade física, verificou-se que mais da metade dos participantes informaram não realizar nenhum exercício físico, como em pesquisas em outras comunidades quilombolas2,24,28. Este déficit na prática de atividade física também pôde ser observado em estudo realizado com idosos em Pernambuco, Brasil, que identificou sedentarismo em 62,1% dos participantes29. Destaca-se que a realização regular de atividade física beneficia a saúde e o sedentarismo acarreta consequências negativas, uma vez que as pessoas possuem maior chance de desenvolver doenças crônicas não transmissíveis6.
O curto período de tempo para a coleta de dados mostrou-se um fator de limitação para a pesquisa posto que, em decorrência das ocupações domésticas e profissionais dos moradores, muitos, considerados elegíveis, não foram encontrados em seus domicílios para conceder a entrevista, no entanto, o número amostral final foi significativo, atendendo dessa forma, aos objetivos do estudo.
CONCLUSÕES
Com a realização desta pesquisa foi possível caracterizar a comunidade quilombola Abacatal/Aurá quanto à condição sociodemográfica e epidemiológica, identificando os aspectos socioeconômicos que repercutem na sua condição de saúde, como a baixa escolaridade, a baixa renda familiar e as péssimas condições sanitárias.
A análise também possibilitou identificar que o baixo consumo de alimentos ricos em nutrientes, a inatividade física, o fumo e a bebida alcoólica são considerados fatores de risco para o adoecimento dessa população, enquanto que os hábitos culturais, como a utilização de ervas para tratamento de doenças, estão fortemente presentes na comunidade e que influenciam no processo saúde doença dos mesmos.
Salienta-se que os problemas sociodemográficos e epidemiológicos identificados na comunidade, podem contribuir para que as ações de saúde possam ser planejadas e efetivadas conforme a realidade apresentada, levando-se em conta o contexto social, político e ambiental da comunidade valorizando seus saberes e práticas tradicionais.
Entende-se que pesquisas direcionadas para as condições de saúde das populações quilombolas são fundamentais, posto que permitem instrumentalizar a população e os profissionais de saúde que estão responsáveis pela atenção à saúde dessa população, permitindo não só buscar alternativas para práticas de educação em saúde melhor direcionadas aos problemas identificados e prevenção de agravos, como subsidiar reivindicações junto ao poder público no intuito de melhorar as condições socioeconômicas e de saúde nessas comunidades além de melhores condições de trabalhos para as equipes da ESF.