INTRODUÇÃO
A autonomia na enfermagem ainda se apresenta como um tema complexo, na medida em que, a despeito das inúmeras mudanças ocorridas ao longo do tempo, suas práticas permanecem atreladas ao modelo biomédico1. Apesar de possuir um corpo próprio de conhecimentos técnico-científicos, sua visibilidade e reconhecimento social são limitados frente à sociedade2. Tal realidade a configura como um objeto de representação social derivada de outras profissões1
Dentre os inúmeros espaços de atuação do enfermeiro, destaca-se o Centro Cirúrgico (CC), por se configurar em uma unidade hospitalar complexa e singular, de acesso restrito, com normas e rotinas particulares, recursos humanos especializados, e equipamentos e materiais específicos, para a execução de intervenções diagnósticas e terapêuticas invasivas, por vezes, complexas. Logo, para esse cenário, exigem-se profissionais habilitados que atendam as mais variadas necessidades dos clientes, frente à elevada densidade tecnológica, o que resulta em uma dinâmica peculiar de assistência em saúde3.
Os processos de trabalho no CC se configuram como práticas complexas, interdisciplinares, com forte dependência entre a atuação individual e da equipe de saúde, desenvolvidas, muitas vezes, em condições ambientais adversas cercadas por estresses, pressões e conflitos4. Desse modo, emergem diferentes desafios cotidianos para o estabelecimento das atividades relacionais, assistenciais e gerenciais do enfermeiro, sobretudo no estabelecimento de uma atuação autônoma que garanta a excelência na produção dos cuidados3.
Levando em consideração que o processo de autonomia pressupõe que o profissional enfermeiro e a equipe de enfermagem possam interferir no processo de definição das prioridades na assistência de forma independente, este estudo se fundamentou na Teoria das Representações Sociais (TRS), por ser entendida como um conjunto de eventos complexos elaborados no cotidiano de indivíduos com o objetivo de tornar familiar o não familiar5, e essa elaboração se dá através de conhecimentos previamente adquiridos. Sendo assim, definida como uma forma de conhecimento do senso comum, estando intimamente relacionada à maneira como as pessoas interpretam ou traduzem os conhecimentos veiculados socialmente6.
Compreender as representações sociais da autonomia elaboradas por enfermeiros do CC possibilita uma reflexão crítica sobre o processo de trabalho nesse ambiente e o reconhecimento de possíveis fatores que interferem na atuação profissional autônoma.
Diante do exposto, definiu-se como questão norteadora: qual é a representação social da autonomia profissional para enfermeiros do centro cirúrgico? E como objetivo buscou-se: analisar as representações sociais elaboradas por enfermeiros sobre sua autonomia profissional no centro cirúrgico.
MATERIAIS E MÉTODOS
Estudo descritivo-exploratório de abordagem qualitativo, cuja elaboração atendeu às recomendações dos Critérios Consolidados de Relato de Pesquisa Qualitativa (COREQ)7, desenvolvido com o suporte teórico da TRS em sua abordagem processual8.
Considerando que a autonomia profissional do enfermeiro é um tema complexo e de pouca visibilidade, esse método tornou-se apropriado já que as representações sociais se apresentam como uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada pelo grupo que participa da construção de uma realidade particular para o conjunto social, sendo estruturadas para moldar uma visão e constituir a realidade em que se vive5.
A pesquisa foi realizada na unidade do centro cirúrgico geral de um hospital universitário localizado na Região Metropolitana II do estado do Rio de Janeiro/RJ, Brasil. A unidade hospitalar foi elencada por ser de grande porte e possuir oito salas cirúrgicas, uma sala de recuperação pós-anestésica com seis leitos e o centro de materiais e esterilização, apresentando demanda de aproximadamente 13 procedimentos/dia, de caráter eletivo, urgências e emergências.
A equipe de enfermagem é composta por oito técnicos de enfermagem e um enfermeiro responsável técnico e dois enfermeiros por plantão, sob o regime da escala de plantão 12 horas trabalhadas por 60 horas de repouso remunerado. Além disso, o hospital caracteriza-se por assistirem pacientes com média e alta complexidade e, portanto, hemodinamicamente instáveis e suscetíveis à frequentes intervenções cirúrgicas.
O número de participantes foi delimitado mediante o total de profissionais no setor, bem como os critérios de inclusão, exclusão e a disponibilidade dos profissionais. Assim, o número amostral final, foram nove enfermeiros, destacando-se que o total de profissionais que trabalham no setor é de 11, onde dois enfermeiros encontravam-se de férias. Como critérios de inclusão: ser e atuar como enfermeiros no centro cirúrgico por, no mínimo, seis meses visando que o participante estivesse adaptado e compreendesse o processo de trabalho no cenário em questão, independentemente do tempo de formação em enfermagem. Foram excluídos: os profissionais que atuavam sob o regime de contrato na unidade de saúde ou os que estivessem de licença de qualquer tipo.
O levantamento de dados se deu entre junho a outubro de 2017, por meio de entrevistas face a face, que seguiu um roteiro pelo entrevistador, dividido em duas partes, onde a primeira continha questões fechadas referentes à caracterização do perfil sociodemográfico dos participantes, como: sexo, idade, tempo de formação, dentre outros, e a segunda parte contou com perguntas abertas referente autonomia profissional do enfermeiro e suas representações sociais no centro cirúrgico, a saber: O que você entende por autonomia profissional? O que você entende por autonomia profissional do enfermeiro? O que você entende por autonomia profissional no centro cirúrgico? Quais as facilidades e dificuldades para o estabelecimento da autonomia profissional? Fale da autonomia profissional do enfermeiro na assistência prestada ao paciente cirúrgico. Qual é a imagem do enfermeiro que atua no centro cirúrgico para o paciente?
O convite aos enfermeiros atuantes no setor deu-se através do contato prévio da enfermeira que exerce a função de gerente do setor, que disponibilizou o total de enfermeiros, a escala de cada um e o melhor horário para realização da entrevista. Foi disponibilizada uma sala reservada para a realização das entrevistas com apenas o entrevistador e o participante, a fim de não atrapalhar a dinâmica do serviço, e em respeito à privacidade. A entrevista teve duração média de 30 minutos, onde foram gravadas em mídia digital (apenas áudio) e, depois transcritas. Nenhuma entrevista teve que ser repetida. Ressalta-se que, o roteiro utilizado para o levantamento de dados foi previamente testado sem necessidade de modificações.
Em observância às determinações da Resolução nº466 de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde, as entrevistas foram realizadas somente após a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal Fluminense, com o respectivo número do parecer: 924.334 e do CAAE: 37502914.8.0000.5243. Foi realizada apresentação e leitura compartilhada do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), havendo o expresso aceite, gratuito e consciente em participar da pesquisa. O respeito ao anonimato e sigilo foi garantido pelo uso de códigos alfanumérico (ENF 1, ENF 2 e assim por diante) para os participantes, na sequência em que as entrevistas foram realizadas.
Os dados foram submetidos à análise de conteúdo na modalidade temática, que visa identificar os núcleos de sentido que compõem a comunicação onde a frequência de aparição se relaciona com o objetivo em questão. Esta modalidade desdobra-se em três etapas: a pré-análise; exploração do material; e tratamento dos resultados9.
Durante a etapa da pré-análise leituras flutuantes de todo o material, retomados os objetivos iniciais da pesquisa, apreendendo os indicadores que orientaram a interpretação final dos resultados. Na etapa seguinte, de exploração do material, os dados foram transformados, para alcançar a compreensão do texto. Realizou-se a leitura exaustiva das entrevistas, destacando a enunciação dos temas, com sua codificação. Na etapa de tratamento dos resultados obtidos, esses temas foram categorizados, procedendo a reflexão crítica dos resultados e discussão embasados na literatura pertinente9. A análise dos conteúdos temáticos foi obtida através do destaque das unidades de registro (URs), que foram agrupadas dentro das unidades de significação (USs) e posteriormente agrupadas em categorias.
RESULTADOS
Participaram do estudo nove enfermeiros que atuavam no cenário em questão em diferentes turnos, dos quais sete eram do sexo feminino. Dentre os participantes, cinco eram pertencentes à faixa etária entre 32 a 59 anos, e quatro tinham entre 60 a 64 anos. Nove possuíam pós-graduação Latu Sensu em áreas correlatas e dois como titulação maior, o curso de pós-graduação Stricto Sensu. Com relação ao perfil profissional dos enfermeiros, cinco, apresentavam tempo de atuação entre 10 a 34 anos e quatro, entre 35 a 40 anos. Além disso, cinco apresentavam um tempo de atuação no cenário em estudo entre 4 a 30 anos e, quatro entre 32 a 40 anos. Quanto ao vínculo empregatício, cinco, tinha apenas um emprego, e quatro dois empregos. Com relação à carga horária semanal, três trabalhavam 40h e seis cumpriam uma jornada de trabalho de 30h semanal. Com relação à ocupação de cargos, seis desenvolviam a função de enfermeiro assistencial e três desenvolviam cargo chefia ou de coordenação à época da coleta de dados.
No total este estudo obteve 111 unidades de registro, distribuídas em 24 unidades de significação que estão contidas em duas categorias, as quais representam 100% do corpus analisado.
A autonomia profissional do enfermeiro do centro cirúrgico: conhecimento, liberdade de atuação e poder de decisão
Esta categoria reúne os conteúdos representacionais dos enfermeiros quanto à sua definição de autonomia. Primeiramente, os enfermeiros apontaram uma relação entre a autonomia e o conhecimento profissional, especialmente em sua expressão técnico-científica.
“Autonomia profissional do enfermeiro eu entendo que é a capacidade do enfermeiro a partir de um aporte técnico científico realizar as suas atividades sem ter que se esbarrar [...], sem ter aquela orientação de outras categorias profissionais, por exemplo.” (ENF.1)
“A autonomia profissional é a gente ter o conhecimento.” (ENF.5)
“É ele colocar na sua prática aquilo que aprendeu um dia, baseado nas questões cientificas [...]. Dentro do conhecimento científico.” (ENF.6)
“Eu acho que é a liberdade que você tem de praticar o exercício da sua profissão baseado nos seus conhecimentos técnico-científicos.” (ENF.7)
Também foi possível observar, através das falas dos enfermeiros, a definição de autonomia relacionada à liberdade de atuação profissional. Destaca-se, ainda, que essa representação da autonomia se torna mais evidente e necessária no ambiente de trabalho para desempenhar suas funções assistenciais e/ou gerenciais, conforme sinalizou o enfermeiro 2.
“É a liberdade que o profissional tem de atuar dentro das suas funções em um determinado ambiente de trabalho. [...] É a liberdade de atuar dentro de padrões de rotinas, de normas, no comando, na coordenação, na orientação e até na execução de atividades assistenciais dentro das nossas atribuições.” (ENF.2)
Ademais, foi evidenciada a representação da autonomia vinculada ao poder de decisão do enfermeiro. Dentro desta categoria, os participantes do estudo relatam que para estabelecer autonomia profissional é necessário ter poder de decisão sem ter que pedir permissão a outros profissionais.
“Autonomia é você ter o poder de decisão, sobre o que está ocorrendo no momento.” (ENF.3)
“Autonomia no centro cirúrgico, você tem o poder decisório em suas mãos, você resolve tudo que achar que tem que resolver. De acordo com a sua determinação.” (ENF.4)
“Eu acho o seguinte, quando você tem autonomia [...], você tem direito de decidir sobretudo. [...] Eu poder ter o livre arbítrio de eu tomar minhas decisões sem ter que estar contatando a ninguém.” (ENF.8)
Diante dessas representações sociais, a presente categoria também reúne os principais aspectos positivos para o estabelecimento da autonomia profissional do enfermeiro no CC, que na visão dos participantes depende, portanto, de sua própria atuação, bem como do seu conhecimento técnico-científico, para o alcance da autonomia e do reconhecimento.
“A facilidade eu acho que é a gente se apropriar do que é nosso, do nosso conhecimento técnico científico, e aí a gente vem participando cada vez mais de pesquisa e se envolvendo com isso, mostrando que a gente tem um conhecimento.” (ENF.1)
“Eu acho que um dos pontos principais [...] é a atuação do próprio enfermeiro. Então ele conquista o espaço, ele conquista o reconhecimento quando ele se apresenta como enfermeiro. Então se ele não tiver presente dominando a área que pertence ao enfermeiro, ele não vai conseguir se impor como tal.” (ENF.2)
Em síntese, segundo os participantes, autonomia está atrelada à liberdade de atuação poder de decisão do enfermeiro, sendo essencial para o desenvolvimento de suas funções assistenciais e gerenciais. Para tal, o conhecimento técnico-científico emerge como elemento crucial para o estabelecimento da autonomia e reconhecimento profissional do enfermeiro no CC.
Os limites para a autonomia profissional do enfermeiro do centro cirúrgico: relações hierárquicas e de poder e conhecimento
Esta categoria versa sobre os conteúdos representacionais para os enfermeiros frente aos limites para o alcance da autonomia profissional no centro cirúrgico, considerando, especialmente as relações hierárquicas estabelecidas no ambiente de trabalho.
“E também com os nossos pares, enquanto enfermeiros a gente tem uma hierarquia, e muitas vezes a nossa autonomia, nosso potencial acaba sendo um pouco tolido por conta dessa hierarquia que acha que não pode ser assim [...]” (ENF.1)
“[...] O que a chefia determinou, é aquilo que vai ser feito.” (ENF.2)
“[...] porque a gente tem que infelizmente ou felizmente não sei, obedecer muito a hierarquia.” (ENF.8)
Nessa perspectiva, a hierarquia estabelecida no centro cirúrgico afeta o poder de decisão dos enfermeiros do Centro Cirúrgico, limitando sua autonomia.
“[...] as vezes eu decido uma coisa e vem o colega por trás e decide outra. Diz não, não. Não é assim, não é rosa, é azul. E ele tem que ser azul porque quem manda é ele [...]” (ENF.3)
“Eu acho o seguinte, quando você tem autonomia [...] você tem direito de decidir sobretudo. No entanto, aqui a diretoria não nos dá essa regalia.” (ENF.8)
“Eu sou coordenadora e tem uma gerência, então tudo a gente tem que ficar passando para gerência, tem que pedir algumas coisas [...] então autonomia plena a gente não tem.” (ENF.5)
Por outro lado, as relações estabelecidas com a equipe médica, que detém boa parte do poder de decisão no ambiente cirúrgico, também limita a autonomia dos enfermeiros nesse espaço.
“E também tem a chefia médica que trabalha junto com a gente, e que, às vezes, muitas coisas ficam com a chefia médica, não fica com a enfermagem”. (ENF.5)
“E essa autonomia ela é muito limitada aqui [...] limitada na sala porque, por mais que você saiba qual o melhor posicionamento, da placa, do paciente na cirurgia [...] que você queira fazer uma prevenção de úlcera porque sabe que o paciente é idoso e vai ficar muito tempo naquela posição, isso depende de uma equipe e muitas vezes isso não é valorizado e você acaba não conseguindo fazer.” (ENF.1)
Nesse sentido, a falta de valorização e reconhecimento do saber da enfermagem, por parte dos outros profissionais, é reconhecida como outro fator limitante para o exercício pleno da autonomia do enfermeiro no ambiente do centro cirúrgico.
“[...] as pessoas não estão acostumadas com isso, porque as outras categorias não veem isso, acham que não tem nenhum conhecimento ali.” (ENF.1)
“Às vezes somos malvistos porque como a gente meio que gerencia o espaço muitas vezes a gente tem que dizer não, isso gera uma certa situação. Porque o outro acha que porque ele é de determinada categoria ele quer prevalecer sobre o que é determinado [...]” (ENF.1)
“[...] outras profissões que também acham que nosso espaço é outro e acabam não querendo que a gente participe de determinado momento, determinado espaço.” (ENF.1)
“Ser reconhecido por outras categorias, principalmente a categoria médica. Porque eles se sentem o dono do mundo, o poderoso da equipe.” (ENF.3)
Ainda nessa categoria, o déficit de conhecimento e a falta de atualização, como educação permanente para os profissionais enfermeiros, também foram destacados como fatores que dificultam a atuação autônoma dos enfermeiros.
“[...] você tem que conquistar isso, se eles confiam em você, acreditam no seu trabalho aí você vai bem, agora se você não passa segurança, não tem conhecimento isso fica comprometido” (ENF.5)
“A gente não tem atualização, não tem treinamento, não tem uma educação permanente, deveria ter, estar sempre se reciclando, treinando, isso é importante.” (ENF 6)
“A dificuldade é muita, né? Da gente se fazer reconhecer. Acho que depende da sua capacidade técnico-científica para você se fazer respeitar.” (ENF3)
Em súmula, existem limites para o exercício pleno da autonomia do enfermeiro no CC, que incluem especialmente as relações hierárquicas e com a equipe médica, a ausência de valorização e reconhecimento da profissão e o déficit de conhecimento e a falta de atualização.
DISCUSSÃO
Ressalta-se que este estudo apresenta como limitação poucas evidências científicas sobre autonomia profissional especificamente no setor cirúrgico, mas especialmente por sua realização em uma única instituição federal de ensino, sem privilegiar instituições de outras autarquias municipal, estadual e privada, onde os enfermeiros atuantes no centro cirúrgico podem ter uma representação social da autonomia diferente dos resultados deste estudo.
Os dados indicam que autonomia profissional do enfermeiro no Centro Cirúrgico ainda é um objeto de representação com dimensões distintas, uma cognitiva e uma prática, que ora facilitam e ora dificultam o exercício da autonomia, dependendo das condições estruturantes e relacionais estabelecidas no ambiente de trabalho.
Assim, por um lado, na dimensão cognitiva como representação da autonomia profissional, pautada essencialmente no conhecimento técnico-científico, fica evidente o posicionamento dos enfermeiros quanto à importância em ter o domínio do conhecimento para a sustentação de uma prática autônoma frente ao exercício da profissão. Soma-se a essa dimensão a liberdade de atuação e o poder de decisão como fatores atrelados ao exercício pleno da autonomia no cenário onde atuam, sem precisar da anuência ou consentimento de outros profissionais.
Essa dimensão conceitual corrobora com a literatura que aponta a autonomia como a “capacidade de se governar pelos próprios meios”2, sendo este um termo introduzido por Kant, que afirmava tratar-se da capacidade de reger-se conforme uma lei própria, da independência de vontade em relação a qualquer desejo ou objeto de desejo. No contexto da enfermagem, entende-se autonomia como a liberdade de tomar decisões no domínio profissional de cada um e agir conforme esse domínio10.
De outra parte, a autonomia relaciona-se à habilidade de tomar decisões autônomas baseadas em noções holísticas a respeito do ser humano, fundamentadas em conhecimento amparado por evidências científicas10. Desse modo, ter autonomia representa para os enfermeiros ter competência profissional em realizar, com liberdade e poder de decisão, suas atividades baseadas em conhecimento técnico-científicos, significando, assim, sua emancipação e independência.
Neste sentido, foi possível observar através da análise dos dados, que os enfermeiros, a partir das vivências e experiências ao longo de sua profissão, demonstram o estabelecimento de uma sincronia entre liberdade de atuação, poder de decisão e conhecimento como fatores contundentes e de grande representação para a definição da autonomia.
O que vai ao encontro do estudo11 quando aponta que a autonomia na enfermagem representa uma prática alicerçada em conhecimentos, habilidades e competências, o que sustenta a tomada de decisão e resoluções no seu espaço de atuação. Desse modo, pode-se inferir que a autonomia não é dada, e sim conquistada, a cada situação manifesta pela responsabilidade, pelas decisões e pela postura assumida. Assim, a autonomia como resultado do conhecimento adquirido e exercido impacta diretamente na respeitabilidade e confiabilidade deste profissional diante da equipe de saúde e da instituição em que atua.
Entretanto, há que se destacar que essa autonomia ainda é um processo em construção, envolto de complexidade e muitos desafios. Sua construção historicamente se deu na sociedade patriarcal, onde a mulher era entendida como frágil, portanto, de fácil dominação. Assim, a prática do cuidado se constituiu ao longo da história sem prestígio e cientificidade que, ao longo dos anos correspondeu em comportamentos inadequados e sem prestígio frente a equipe de saúde12.
Portanto, por outro lado, existe uma dimensão limitante no estabelecimento da autonomia frente às atribuições do enfermeiro, devido à hierarquização profissional que precisa ser obedecida e à interferência de outras categorias profissionais na atuação do enfermeiro, o que limita sua autonomia.
É fato que, relações de poder em uma unidade hospitalar sempre foi um assunto complexo, pois há muito, é reconhecido o conflito existente entre a medicina e a enfermagem como um ponto nefrálgico existentes nas unidades de saúde, visto que, desta relação, deriva o mais estreito vínculo profissional. Esta relação pode ser explicada sob várias vertentes, desde a construção histórica do saber e formalização da enfermagem, onde o médico era o único que detinha conhecimento para ensinar, e desse modo, apenas ele determinava quais ações a enfermeira poderia desempenhar, criando uma relação de subordinação, com forte representação até os dias atuais diante da conflituosa relação de papeis e de poder estabelecida entre a medicina e a enfermagem13.
Depreende- se que a construção da relação dicotômica entre médicos e enfermeiros abarca questões históricas e culturais diretamente relacionada a formalização identitária da enfermagem, resultando segundo os enfermeiros na falta de reconhecimento e na desvalorização do seu saber enquanto profissão, atuando como entraves na definição profissional do enfermeiro autônomo14.
Assim, condizente com o modelo biomédico até os dias atuais o médico ocupa lugar de destaque frente ao processo laboral nos sistemas de saúde, determinando a execução de todas as atividades não só voltadas para o paciente, mas como também produtivas e administrativas, como alta, óbito, admissão, transferência dentre outras, como profissional detentor do saber e do poder enquanto o enfermeiro atua como executor das ordens recebidas15.
Desse modo, institucionalização do papel do enfermeiro em relação à medicina, tornou-se ao longo dos anos uma prerrogativa verdadeira, pois o modelo anteriormente descrito era o disciplinar, onde as ordens dadas deveriam ser atendidas com presteza e sem questionamento. Essa vertente é reforçada pela fala dos participantes, que tem seus espaços sociais de atuação delimitados dentro de uma escala hierárquica dentro do micropoder hospitalar.
Todavia, cabe destacar que atuação autônoma do enfermeiro abarca uma gama de fatores e não está atrelada apenas ao poder hierárquico exercido pelo médico, mas como, outros fatores que incluem desde a formação profissional até o processo de trabalho de enfermagem no cenário hospitalar.
Evidências atuais indicam que a falta de autonomia profissional na enfermagem ainda se constitui como um fator limitador. Percebem-se inferências ligadas ao modelo biomédico, como balizador à autonomia do enfermeiro, mas também o ambiente hospitalar que pode ou não favorecer a autonomia profissional, bem como o exercício da liderança, correspondendo à qualidade assistencial e à satisfação profissional, possibilitando ao profissional a capacidade de se governar apoiado em seu conhecimento técnico-cientifico, visando uma assistência de qualidade16.
O estudo supracitado também destaca alguns dos fatores intervenientes para atuação autônoma do enfermeiro, que são referidos como pontos negativos e positivos, que se aproximam dos achados do estudo. Dentre os potencializadores da autonomia no ambiente hospitalar são destacados a Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE); a classificação dos pacientes em serviços de urgência e emergência; o conhecimento técnico-científico; a assistência transcultural; a experiência profissional; a valorização profissional; relações interpessoais e comunicação entre a equipe multiprofissional e paciente16.
E como pontos negativos destacam-se não apenas a influência do médico sobre o trabalho do enfermeiro, mas também a atuação em unidade crítica ou não crítica; a deficiência do conhecimento técnico-científico, sobretudo frente a situações de alta complexidade; a hierarquia; filosofia institucional; estrutura física inadequada; escassez de material dentre outros16, o que também corrobora com os resultados da atual pesquisa.
Por outro lado, observa-se o empoderamento que contempla duas teorias voltadas ao ambiente organizacional, a estrutural e a psicológica. Onde a primeira, refere-se à ausência ou presença de condições propicias no local de trabalho, enquanto a segunda, se relaciona a motivação no ambiente de trabalho, com assentamento nas dimensões de sentido, competência, autodeterminação e impacto17.
Os achados desta investigação vão ao encontro de um estudo17, quando afirma que as estruturas organizacionais influenciam mormente as atitudes e comportamentos de seus colaboradores, que, normalmente reagem as situações a que são expostos. Assim sendo, o ambiente hospitalar também interfere de forma direta na autonomia do enfermeiro de maneira negativa quando o modelo biomédico é imperativo funcionando como fator limitador da prática autônoma e positivamente quando o ambiente possibilita o exercício da liderança relacionada à prestação de uma assistência qualificada, além da satisfação profissional16, conforme destacado nos depoimentos dos participantes.
Neste sentido, os colaboradores quando respeitados e assegurados nestes quesitos sentem-se empoderados, comprometidos organizacionalmente, autônomos e eficientes17. Portanto, o termo autonomia significa “qualidade ou estado autônomo, liberdade moral e intelectual”18, caracterizada por tomar decisões que derivam do seu intelecto e moral, ou seja, o mesmo que autogovernar-se. Isto posto, a autonomia profissional de enfermagem volta-se para a realização de ações por meio de suas habilidades, conhecimentos e atitudes para a tomada de decisão19.
CONCLUSÕES
Conclui-se que a autonomia profissional do enfermeiro no centro cirúrgico se apresenta como um objeto de representações distintas, uma cognitiva e uma prática, onde a dimensão cognitiva pauta-se no conhecimento técnico-científico e a dimensão prática representada pelo poder de decisão e liberdade de atuação no cenário onde atuam.
Diante do que foi exposto os enfermeiros referem uma analogia entre sua atuação e o conhecimento técnico científico como condição imprescindível, para o estabelecimento de sua autonomia profissional reconhecida e legitimada no campo de atuação. Contudo também foi possível observar que a atuação autônoma do enfermeiro está atrelada a uma gama de fatores que perpassam pela hierarquia e filosofia institucional, bem como a relação estabelecida frente a equipe multiprofissional, dentre outros.
Desta maneira, o estudo possibilitou uma reflexão crítica sobre o tema, propondo um questionamento sobre atuação do enfermeiro no CC, frente à representação social da autonomia elaborada pelos próprios e, a partir daí, reconhecer a necessidade de algumas mudanças em seu processo de trabalho.
Desse modo, o presente não esgota a análise sobre o tema, ao contrário, estimula a produção de novos saberes a despeito da prática autônoma, como forma de ampliar as perspectivas do profissional enfermeiro sobre sua atuação e os aspectos que a circunscreve em várias instâncias, sobretudo no CC.