INTRODUÇÃO
Florence Nightingale instituiu, com propriedade, a enfermagem como uma prática espiritual, uma vez que a ciência do cuidar deveria se constituir de um conjunto de disciplinas com foco no envolvimento e no bem-estar humano, a partir do entendimento de que as ações, a moral, a compaixão e as leis naturais seriam a expressão espiritual manifestada pelo criador1 . Na fonte da enfermagem, Florence deixoua o compromisso com a visão holística do paciente para todos os processos cuidativos que dela advinham1 .
Jean Watson, teorista contemporânea, que desenvolveu, em sua Teoria do Cuidado Humano, o conceito de Cuidado Transpessoal, afirma que tais conhecimentos sobre saúde e doença, nesta perspectiva nightingaleana, são necessários para reafirmar a interligação entre pessoa e ambiente, pessoa e natureza, entre os mundos internos e externos, entre o privado e o público, entre o físico e o espiritual2 .
A Teoria do Cuidado Transpessoal auxilia a compreensão de momentos críticos no processo saúde-doença, como a vivência de uma cirurgia de grande porte. A proximidade da cirurgia cardíaca traz repercussões significativas para aqueles que vivenciam tal experiência, com vários pensamentos e inquietações que, consequentemente, podem culminar em sinais e sintomas de ansiedade e depressão3 , 4 . Deve-se considerar, no cuidado às pessoas que vivenciam esta experiência, a relação entre consciência, pensamentos e linguagem e o modo como tal interação influencia o campo energético-transpessoal do ser, além do modo como nosso estado de consciência afeta as habilidades de conexão com dimensões mais sutis da vida2 .
À espera da cirurgia, os pacientes passam por grande vulnerabilidade, tanto fisiológica quanto psicológica, visto que, neste período, emergem questões profundas e conflitos interiores3 - 6 . E, para lidarem com os sentimentos desafiadores e inquietações, várias estratégias de enfrentamento são utilizadas, incluindo a espiritualidade e a religiosidade6 - 7 . A espiritualidade é, em outra análise, uma abertura a possibilidades, um mundo onde o prognóstico incerto pode ser não tão sombrio.
Quando ocorre um momento real de cuidado, perante a integralidade das necessidades do ser cuidado, diz-se que o mesmo é transpessoal por permitir a presença do espírito dos envolvidos, tornando-se parte da história de vida de ambos e oferecendo novas possibilidades de vivência do ser cuidado8 . Watson afirma que neste gênero de momento de cuidar ou relação transpessoal de cuidar, o cuidador pode partilhar a experiência do outro e o ser cuidado pode também entrar na experiência de quem cuida, e que este aspecto do transpessoal incorpora uma dimensão metafísica e espiritual para além do tempo, do espaço e do materialismo8 .
Por fim, pode-se dizer que o enfermeiro deve ter compromisso com o bem-estar espiritual e a saúde integral do paciente. Se for capaz de cuidadosamente detectar a condição da alma, de sentir esta emoção e esta união com o outro, pode expressá-la com todo o cuidado e o receptor do cuidado liberta os sentimentos que tem ansiado e desejado expressar9 .
Na perspectiva watsoniana, viemos do mundo do espírito e para ele nos voltamos, retornamos à fonte espiritual quando estamos vulneráveis, suscetíveis, temerosos ou mesmo doentes10 . É este retorno à essência, ao self , e a vulnerabilidade envolvida no pré-operatório que se deseja analisar o objeto deste estudo, que são as relações entre o bem-estar espiritual e religiosidade no período anterior à cirurgia cardíaca. Sendo assim, o presente estudo teve por objetivo avaliar a religiosidade e o bem-estar espiritual de pacientes internados no período pré-operatório de cirurgia cardíaca na perspectiva do Cuidado Transpessoal de Jean Watson.
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de um estudo transversal, descritivo, com abordagem quantitativa, realizado entre os meses de janeiro e junho de 2017, nas enfermarias cirúrgicas de hospital universitário e maior centro cardiológico do Norte e Nordeste do Brasil. Trata-se de um hospital especializado em cardiologia clínica e cirúrgica, que atende desde a emergência cardiológica até o cuidado pós-operatório ambulatorial, com um centro diagnóstico especializado completo e serviço de hemodinâmica 24h.
Compuseram a amostra 174 participantes em período pré-operatório de cirurgia cardíaca internados no hospital, por amostragem aleatória simples, por conveniência, segundo os critérios de inclusão: pacientes internados em período pré-operatório de cirurgia cardíaca de revascularização miocárdica, troca ou plastia valvar, maiores de 18 anos e independente de gênero. Foram excluídos pacientes que apresentaram nível de consciência rebaixado, comunicação verbal prejudicada ou qualquer condição clínica ou psicológica que prejudicassem a entrevista ou a tornassem desconfortável; diagnóstico médico prévio referido de transtornos de humor, de ansiedade ou qualquer outro transtorno psiquiátrico.
Os dados foram coletados utilizando-se um instrumento próprio que avaliava: variáveis sociodemográficas e do internamento, como sexo, idade, procedência, renda, escolaridade, afiliação religiosa, tipo de cirurgia, tempo de internamento, tempo de pré-operatório; além do índice de Religiosidade de DUKE e a Escala de Bem-Estar Espiritual (EBE)11 - 13 .
O Índice de Religiosidade de Duke (DUREL) é uma escala de cinco itens que mensura três das principais dimensões do envolvimento religioso relacionadas a desfechos em saúde: Religiosidade Organizacional - RO (frequência a encontros religiosos, por exemplo: missas, cultos, cerimônias, grupos de estudos ou de oração); Religiosidade Não Organizacional - RNO (frequência de atividades religiosas privadas, por exemplo: orações, meditação, leitura de textos religiosos, ouvir ou assistir programas religiosos na TV ou rádio); Religiosidade Intrínseca - RI (refere-se à busca de internalização e vivência plena da religiosidade como principal objetivo do indivíduo)14 . A RO (item 1) e RNO (item 2) pontuam, ambas, de 1 a 6 pontos de forma independente, enquanto que a RI é composta pelos itens de 3 a 5, cada um variando de um a cinco pontos, num total de três a quinze pontos neste domínio.
O bem-estar espiritual pode ser avaliado por uma escala já validada, traduzida para o português, a Escala de Bem-Estar Espiritual (EBE). Neste estudo, optou-se por avaliar tal construto, ao invés de avaliar a espiritualidade, por ser o bem-estar espiritual uma dimensão considerada como foco do cuidado na perspectiva da teoria de Jean Watson e, além disso, por ser uma faceta do bem-estar ainda não considerada oficialmente no conceito ampliado de saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS).
A Escala de Bem-Estar Espiritual (EBE) é um instrumento subdividido em duas subescalas (de 10 itens cada), uma de Bem-estar religioso (BER), com referência a Deus e uma religião, e outra de bem-estar existencial (BEE), que refere-se à sensação de encontro com o sentido e o comprometimento com algo significativo na vida. As 20 questões devem ser respondidas através de uma escala Likert de seis opções, cujo escore total da escala é a soma das pontuações destas 20 questões e os escores podem variar de 20 a 12011 - 13 .
A coleta de dados aconteceu em duas fases principais. Na primeira, os participantes foram informados quanto dos objetivos da pesquisa e convidados à participação mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Na segunda etapa, foi realizada a aplicação dos instrumentos de coleta.
As entrevistas foram realizadas à beira-do-leito, com anuência do enfermeiro responsável pelo setor no horário, que foram orientados a não intervirem em nenhuma resposta se permanecessem ao lado dos pacientes. Para que as entrevistas ocorressem, os pesquisadores se certificaram com a equipe de enfermagem no horário se os possíveis entrevistandos estavam cientes da cirurgia, ou seja, não foi dada a notícia da decisão de realizar a cirurgia. Respeitou-se o momento desejado pelo entrevistado para a coleta, bem como os horários da rotina do setor, como visitas médicas, de enfermagem, procedimentos, exames.
As variáveis sociodemográficas e clínicas, classificadas como independentes, foram consideradas como variáveis dependentes o bem-estar espiritual e a religiosidade do paciente, analisadas como variáveis quantitavas são discretas enquanto que todas as qualitativas são nominais.
O armazenamento dos dados primários deu-se através de planilhas do software Microsoft Excel 2013. Os dados foram analisados com recursos de estatística descritiva e inferencial, utilizando-se o software Epi-info 7.0 e Statistical Package for Social Science SPSS 24.0. Através do teste de Normalidade Kolmogorov-Smirnov, foram verificados que os desfechos avaliados apresentaram distribuição normal (<p=0,05). Foi utilizado o teste t-student para verificar a significância na comparação das médias das variáveis contínuas, sempre considerando a significância estatística de p<0,05 (5%). A fidedignidade no uso das escalas e consistência interna dos domínios foram avaliados pelo alfa de Cronbach. Tanto s dimensão do bem-estar espiritual religioso quanto o existencial tiveram um valor aceitável para o índice de confiabilidade (α=0,844; α=0,703), indicando uma representação aceitável da informação desejada. No total, a escala de bem-estar espiritual apresentou boa confiabilidade (α=0,7,89). A religiosidade intrínseca (itens 3,4 e 5 da DUREL) não obteve uma confiabilidade suficiente (α= 0,482) na amostra, não sendo utilizada em outras análises.
A análise dos resultados baseou-se no referencial da teoria do Cuidado Transpessoal de Jean Watson. A dimensão espiritual e a religiosidade, avaliadas de forma quantitativa, foram relacionadas aos pressupostos da teoria, considerando que a manifestação do self ocorre por meio das emoções, do comportamento, do corpo físico e suas características. Apesar de Watson afirmar que sua pesquisa tenha caminhado por trilhas qualitativas e fenomenológicas, explorando a subjetividade do tema, a mesma previu e encorajou que os enfermeiros desenvolvessem novas abordagens apropriadas ao objeto de estudo2 . Assim posto, considera-se a abordagem quantitativa para a extração dos dados de uma amostra significativa, utilizando escalas validadas para avaliação dos construtos pertinentes ao objeto de estudo e aos objetivos definidos previamente.
A pesquisa foi elaborada pautada nos preceitos da Resolução CNS nº466/2012. O início da coleta de dados deu-se apenas após a apreciação e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa dainstituição (Parecer nº1.915.220, CAAE: 30622414.7.0000.5192).
RESULTADOS
A distribuição do sexo na amostra foi (50,6%) de homens e (49,4%) de mulheres. A maioria dos pacientes era casada (54,6%), católica (55,2%) e ou evangélica (44,8%), e proveniente do interior do estado (49,1%) contra um total de 50,9% procedentes da capital e região metropolitana e casada ou com companheiro (54,6%). A média idade foi de 59,16 anos (±13,86), sendo que 55,7% tinham acima de 60 anos. Maior parte da amostra afirmou-se sem atividade laboral (66,7%), considerando desempregados e aposentados, tendo apenas um terço ativo no mercado de trabalho (33,3%). A renda média foi de 1,31 salários mínimos (±0,96), sendo que 70,7% declararam receber até um salário.
Os pacientes aguardavam ser submetidos a cirurgias de revascularização miocárdica (52,9%) e troca ou plastia valvar (47,1%). Apenas um pouco mais de um quinto da amostra (22,5%) já havia sido submetida a cirurgia cardíaca prévia. Em 34,5% dos casos houve cancelamento da cirurgia e o número médio de cancelamentos observado foi de 0,57± 0,98.
Em média, os pacientes ficaram internados por 22,06 dias (±11,08), sendo que 70,7% mais do que 15 dias; o período médio de pré-operatório igual a 20,95±29,78 com 56,9% dos pacientes em até 15 dias e 43,1% com período superior a 15 dias de internamento à espera da cirurgia para a grande maioria dos pacientes houve um acompanhante (85,6%) e visita religiosa (65,5%), porém uma visita diária não foi observada tão frequentemente (25,3%). Apenas em 6,9% dos casos houve uma solicitação de visita religiosa.
Na avaliação da religiosidade, com a aplicação da DUREL, a religiosidade não-organizacional teve maior média e mediana que a organizacional, sendo a religiosidade intrínseca elevada, com mediana próxima ao valor máximo. Com essa avaliação, pode-se afirmar que, de forma geral, para os três domínios da religiosidade avaliados, a amostra apresentou elevados escores ( Tabela 1 ).
Média | Desvio-padrão | Mediana | Mínimo | Máximo | |
---|---|---|---|---|---|
Itens da DUREL | |||||
Religiosidade Organizacional (RO) | 4,20 | 1,42 | 4,0 | 1,0 | 6,0 |
Religiosidade Não-Organizacional (RNO) | 4,70 | 1,20 | 5,0 | 1,0 | 6,0 |
Religiosidade Intrínseca (RI) | 12,80 | 2,00 | 13,0 | 6,0 | 15,0 |
Itens da EBE | |||||
Bem-Estar Religioso (BER) | 55,30 | 8,08 | 54 | 5,0 | 60,0 |
Bem-Estar Existencial (BEE) | 45,62 | 8,69 | 46 | 10,0 | 60,0 |
Bem-Estar Espiritual total (BEET) | 100,93 | 14,07 | 100 | 15,0 | 120,0 |
Fonte: A pesquisa.
DUREL: Índice de Religiosidade de Duke. EBE: Escala de Bem-Estar Espiritual
Avaliando-se os resultados dos domínios da religiosidade, em função das variáveis sociodemográficas dicotomizadas, pode-se verificar que as mulheres apresentaram índices maiores de religiosidades organizacional (p=0,05) e não-organizacional (p=0,01), e que os pacientes com renda menor que um salário mínimo apresentaram maiores escores de religiosidade organizacional (p=0,02). Além disso, na variável religião, os evangélicos apresentaram melhores resultados em ambas as dimensões (p<0,01; p=0,03) ( Tabela 2 ).
Variáveis | Religiosidade Organizacional (md±dp*) | p** | Religiosidade Não-Organizacional (md±dp*) | p** |
---|---|---|---|---|
Sexo | 0,05 | 0,01 | ||
Masculino | 3,90±1,49 | 4,47±1,43 | ||
Feminino | 4,50±1,29 | 4,94±0,98 | ||
Idade | 0,34 | 0,39 | ||
Mais que 60 anos | 4,10±1,30 | 4,63±1,40 | ||
Até 60 anos | 4,31±1,85 | 4,79±1,44 | ||
Anos de estudo | 0,83 | 0,09 | ||
Até 5 anos | 4,18±1,44 | 4,58±1,21 | ||
Mais que 5 anos | 4,23±1,34 | 4,92±1,29 | ||
Atividade laboral | 0,56 | 0,51 | ||
Com atividade | 4,43±1,69 | 4,93±1,07 | ||
Sem atividade | 4,20±1,34 | 4,69±1,29 | ||
Renda | 0,02 | 0,53 | ||
Até 1 salário-mínimo | 4,41±1,27 | 4,74±1,12 | ||
Mais que 1 salário-mínimo | 3,69±1,63 | 4,61±1,52 | ||
Número de filhos | 0,64 | 0,43 | ||
Até 2 filhos | 4,25±1,41 | 4,79±1,15 | ||
Mais que 2 filhos | 4,15±1,43 | 4,64±1,32 | ||
Estado Civil | 0,48 | 0,24 | ||
Com companheiro(a) | 4,13±1,45 | 4,60±1,35 | ||
Sem companheiro(a) | 4,28±1,39 | 4,82±1,12 | ||
Religião | <0,001 | 0,03 | ||
Católico | 3,58±1,27 | 4,52±1,43 | ||
Evangélico | 4,95±1,23 | 4,96±0,95 |
Fonte: A pesquisa.
*md±dp: média±desvio-padrão**teste t
A Tabela 3 , apresenta o resultado da avaliação de bem-estar espiritual em função de variáveis sócio-demográficas dicotomizadas. Na avaliação do bem-estar espiritual, considerando-se as duas dimensões avaliadas pela escala, bem-estar existencial e religioso, foi possível verificar que o bem-estar existencial teve valor médio inferior ao observado para o religioso. O bem-estar total teve um resultado médio elevado, 100,93 pontos (±14,07). O bem-estar religioso e o espiritual total não se apresentaram em escores significativamente diferentes entre variáveis sócio-demográficas dicotomizadas, sendo apenas o existencial maior entre os que tinham menos de 5 anos de estudo (p=0,05). Em todas as dimensões do bem-estar espiritual, evangélicos apresentaram escores ligeiramente maiores que católicos, apesar de não ser estatisticamente significativa a diferença.
Variáveis | Bem-Estar Religioso (md±dp*) | p** | Bem-Estar Existencial (md±dp*) | p** | Bem-Estar Espiritual (md±dp*) | p** |
---|---|---|---|---|---|---|
Sexo | 0,48 | 0,02 | 0,34 | |||
Masculino | 54,88±8,09 | 47,07±8,21 | 101,94±14,13 | |||
Feminino | 55,74±8,09 | 44,14±8,97 | 99,88±14,03 | |||
Idade | 0,06 | 0,55 | 0,49 | |||
Mais que 60 anos | 54,29±9,42 | 45,97±8,89 | 100,27±16,15 | |||
Até 60 anos | 56,57±5,13 | 45,18±8,48 | 101,75±10,26 | |||
Anos de estudo | 0,08 | 0,05 | 0,84 | |||
Até 5 anos | 54,52±9,41 | 46,57±8,30 | 101,09±15,66 | |||
Mais que 5 anos | 56,73±4,58 | 43,90±9,18 | 100,63±10,74 | |||
Atividade laboral | 0,08 | 0,86 | 0,36 | |||
Com atividade | 58,79±1,93 | 44,86±9,04 | 103,64±9,21 | |||
Sem atividade | 54,21±9,71 | 45,33±9,18 | 99,54±16,38 | |||
Renda | 0,54 | 0,31 | 0,33 | |||
Até 1 salário-mínimo | 55,07±8,84 | 45,19±9,25 | 100,25±15,46 | |||
Mais que 1 salário-mínimo | 55,88±5,89 | 46,67±7,16 | 102,55±9,91 | |||
Número de filhos | 0,33 | 0,58 | 0,83 | |||
Até 2 filhos | 55,99±6,02 | 45,20±9,26 | 101,19±12,28 | |||
Mais que 2 filhos | 54,79±9,34 | 45,94±8,27 | 100,73±15,36 | |||
Estado Civil | 0,19 | 0,58 | 0,27 | |||
Com companheiro(a) | 54,57±988 | 45,28±8,93 | 99,85±16,22 | |||
Sem companheiro(a) | 56,19±5,08 | 46,03±8,44 | 102,22±10,92 | |||
Religião | 0,08 | 0,32 | 0,1 | |||
Católico | 54,33±9,85 | 45,03±9,56 | 99,36±16,86 | |||
Evangélico | 56,51±11,26 | 46,35±7,46 | 102,85±9,36 |
Fonte: A pesquisa.
*md±dp: média±desvio-padrão**teste t
Avaliando-se desfechos de religiosidade em função de dados relacionados à cirurgia e internamento no período pré-operatório, verificou-se que, de forma significativa, escores de religiosidade não-organizacional estiveram relacionados a ausência da acompanhantes. Apesar de não ser estatisticamente significativa a associação, pacientes com tempo de internamento e de pré-operatório maiores que 15 dias também apresentaram maiores escores, assim como os que passaram pela experiência de cancelamento da cirurgia ( Tabela 4 ).
Variáveis | Religiosidade Organizacional(md±dp*) | p** | Religiosidade Não-Organizacional (md±dp*) | p** |
---|---|---|---|---|
Cirurgia | 0,72 | 0,45 | ||
Revascularização Miocárdica | 4,23±1,39 | 4,64±1,31 | ||
Troca ou plastia de válvula | 4,15±1,46 | 4,78±1,17 | ||
Cirurgia cardíaca prévia | 0,68 | 0,59 | ||
Sim | 4,10±1,45 | 4,62±1,21 | ||
Não | 4,21±1,41 | 4,74±1,26 | ||
Cancelamento da cirurgia | 0,13 | 0,07 | ||
Sim | 4,47±1,32 | 4,90±1,17 | ||
Não | 4,05±1,46 | 4,60±1,28 | ||
Acompanhante | 0,97 | 0,03 | ||
Sim | 4,19±1,42 | 4,61±1,29 | ||
Não | 4,20±1,50 | 5,20±0,91 | ||
Tempo de internamento | 0,48 | 0,07 | ||
Até 15 dias | 4,08±1,55 | 4,43±1,39 | ||
Mais de 15 dias | 4,24±1,37 | 4,81±1,18 | ||
Tempo de pré-operatório | 0,22 | 0,13 | ||
Até 15 dias | 4,08±1,42 | 4,58±1,26 | ||
Mais de 15 dias | 4,35±1,42 | 4,87±1,22 |
Fonte: A pesquisa.
*md±dp: média±desvio-padrão**teste t
Os desfechos de bem-estar espiritual em função de dados relacionados à cirurgia e internamento no período pré-operatório de cirurgia cardíaca não variaram de forma significativa ( Tabela 5 ).
Variáveis | Bem-Estar Religioso (md±dp*) | p** | Bem-Estar Existencial (md±dp*) | p** | Bem-Estar Espiritual (md±dp*) | p** |
---|---|---|---|---|---|---|
Cirurgia | 0,98 | 0,84 | 0,91 | |||
Revascularização Miocárdica | 55,30±7,67 | 45,73±8,11 | 101,03±13,27 | |||
Troca ou plastia de válvula | 55,32±8,55 | 45,47±9,49 | 100,78±15,21 | |||
Cirurgia cardíaca prévia | 0,71 | 0,28 | 0,38 | |||
Sim | 54,92±6,03 | 44,26±8,2 | 99,18±10,73 | |||
Não | 55,43±8,63 | 45,99±8,85 | 101,42±14,95 | |||
Cancelamento da cirurgia | 0,55 | 0,15 | 0,22 | |||
Sim | 54,80±8,84 | 44,30±9,09 | 99,10±15,26 | |||
Não | 55,57±7,68 | 46,32±8,43 | 101,89±13,38 | |||
Acompanhante | 0,17 | 0,21 | 0,98 | |||
Sim | 54,93±8,48 | 45,89±8,81 | 100,82±14,79 | |||
Não | 57,36±5,27 | 43,52±7,65 | 100,88±9,07 | |||
Tempo de internamento | 0,62 | 0,04 | 0,11 | |||
Até 15 dias | 55,78±9,23 | 48,59±8,83 | 104,37±16,11 | |||
Mais de 15 dias | 55,11±7,59 | 44,80±8,54 | 99,91±13,08 | |||
Tempo de pré-operatório | 0,33 | 0,56 | 0,36 | |||
Até 15 dias | 54,79±9,71 | 45,28±8,95 | 100,07±16,25 | |||
Mais de 15 dias | 55,99±5,21 | 46,07±8,34 | 102,05±10,55 |
Fonte: A pesquisa.
*md±dp: média±desvio-padrão**teste t
DISCUSSÃO
Os pacientes avaliados apresentaram elevados escores de religiosidade em todos os domínios, incluindo a religiosidade intrínseca, relacionada, mais diretamente, com a espiritualidade. Na avaliação da religiosidade, a religiosidade não-organizacional obteve maior média e mediana que a organizacional, sendo a religiosidade intrínseca elevada, com mediana próximo ao valor máximo encontrado. Pode-se afirmar que, de forma geral, para os três domínios da religiosidade avaliados, a amostra apresentou elevados escores.
Estes resultados mostram o quanto a religiosidade é significativa para os pacientes no período pré-operatório de cirurgia cardíaca (objeto desse estudo). Em particular, essa diferença entre a religiosidade não-organizacional e a organizacional aponta para o fato de que os pacientes se utilizam da religiosidade como estratégia de enfrentamento, mesmo que anteriormente ao diagnóstico e internamento não tenham a religiosidade organizacional em escores tão altos15 - 17 .
Pesquisas têm mostrado que estratégias de enfrentamento, com base na fé e crenças dos pacientes (por exemplo, a prece, leituras,), predizem menos ansiedade e depressão e maior bem-estar espiritual e crescimento pós-traumático18 - 20 . A espiritualidade tem papel tão importante na manutenção do bem-estar e do humor, que um estudo clínico com uma grande amostra (847 pacientes) encontrou que não havia diferenças entre a influência benéfica que a intervenção psicológica poderia trazer em relação à intervenção espiritual19 .
Outros estudos evidenciaram melhores associação entre melhores escores de esperança e melhor enfrentamento do trâmite cirúrgico21 , 22 . Essa relevância da espiritualidade, que vem sendo reconhecida nos estudos acerca do enfrentamento de doenças, foi investigada em outras publicações, mostrando que melhora a adesão terapêutica de cardiopatas crônicos, assim como abre espaço à busca de outras alternativas terapêuticas23 , 24 .
Dentre as estratégias de enfrentamento utilizadas por pacientes em pré-operatório de cirurgia cardíaca, outro estudo nacional utilizando a Teoria Fundamentada nos Dados (n= 23 participantes) relatou que a modalidade de coping sustentativo, que inclui a espiritualidade, foi utilizado por metade dos pacientes15 . A análise qualitativa também já demonstrou a presença de sentimentos positivos e de busca por fé e esperança na religiosidade diante o evento da cirurgia cardíaca15 - 17 . Outro estudo observou o elevado valor da utilização de recursos espirituais no enfrentamento da cirurgia cardíaca15 .
Os elevados escores de religiosidade despertam mais reflexões pautadas na teoria de Watson. Em primeiro lugar, as médias maiores de religiosidade não organizacional, relacionadas às práticas que o paciente realiza individualmente, foram mais altas que o domínio organizacional e o mesmo se deu em relação à religiosidade intrínseca. Na perspectiva da teoria, as crenças religiosas, práticas, ideais e morais fazem parte das necessidades humana de ordem superior, de busca e de crescimento8 .
A religiosidade organizacional estaria na dimensão das necessidades integradoras, da relação do ser com o outro, coletivo, como uma necessidade de pertencimento, de afiliação. Na divisão das necessidades humanas feita por Watson, a religiosidade intrínseca e não-organizacional são de ordem mais elevada que a religiosidade organizacional, mas relacionadas à transcendência do eu que estar num templo apenas8 .
A Teoria do Cuidado Transpessoal explica que o enfermeiro, para colocar-se em contato e compreender as demandas existenciais, deve entender a antiga e a emergente cosmologia de uma unidade consciente e interligada, com o posicionamento moral de sustentar o infinito e o mistério da condução humana8 . No tocante a abordagem da espiritualidade-religiosidade do paciente, Watson vai além, afirmando, no décimo fator de cuidado, que o enfermeiro deve garantir uma aceitação das forças fenomenológicas-existenciais e a possibilidade da ocorrência de um milagre25 .
O milagre, não no sentido místico apenas ligado a um processo de cura além das evidências, mas no sentido de uma mística interior, visto como transformações e ganhos no processo de adoecer que o paciente sequer pensaria passar antes. Pesquisas internacionais mostram que pacientes elegíveis à cirurgia cardíaca utilizaram-se de terapias integrativas e complementares para melhorar a saúde, bem-estar e aliviar sintomas e, até mesmo, buscam estratégias de curas espirituais e energéticas23 - 24 .
A manutenção do bem-estar espiritual apresentou particularidades que podem ser entendidas à luz dos princípios da teoria de Watson. De início, refletindo-se sobre a constatação estatística de que o bem-estar existencial teve valor médio inferior ao observado para o religioso, pode-se dizer que, para os pacientes, as necessidades de ordem superior interpessoais e psicossociais, relacionadas mais aos conflitos existências, tiveram peso maior que as dúvidas e questionamentos que se poderia fazer em relação a Deus, ao destino, numa perspectiva religiosa2 , 6 , 8 . Ou, ainda, em uma ordem inversa, que a necessidade da cirurgia, apesar de trazer inquietações no campo religioso, repercutiu mais significativamente no campo existencial, no qual o paciente precisa enfrentar as questões íntimas relacionadas ao adoecer, hospitalizar-se e se adaptar a uma nova vida com limitações.
Verificou-se que, de forma significativa, os pacientes que tinham menos de cinco anos de estudo mantinham maior bem-estar existencial que os demais. Pode-se supor que esse grupo tenha maior engajamento religioso, pois também tinham maior religiosidade organizacional e, com isso, recebiam maior suporte social vindo da igreja ou comunidade religiosa a qual faziam parte. Pode-se refletir, ainda, que a teorista estabelece como fator para o cuidado a promoção de ensino-aprendizagem transpessoal, reconhecendo o humano, que é o outro, seu ambiente interno, seu arcabouço de vivências e suas angústias em um processo dialógico profundo, para além de um protocolo estrito de educação para a cirurgia com metas rígidas de orientações, sem espaço para dúvidas e sem sensibilidade para os feedbacks não verbais (paralinguagem)8 .
Outro fato relevante é que os desfechos de bem-estar espiritual, em função de dados relacionados à cirurgia e internamento no período pré-operatório de cirurgia cardíaca não variaram de forma significativa. Essas variáveis, ameaçadoras do ponto de vista biofísico e psicofísico, não foram suficientes para alterar o bem-estar espiritual, provavelmente por a religiosidade e a espiritualidade estarem, nesse período, em maior consideração pelos pacientes, particularmente como estratégia de enfrentamento.
No modelo de Cuidado Transpessoal, o profissional de saúde mantém um ideal moral, além de uma técnica interpessoal, olhando para além da doença per si , procurando fontes mais profundas para a cura interior9 , 25 . É através desse olhar que se entende o fenômeno observado na amostra estudada, na qual o bem-estar existencial, relacionado a crises existenciais, apresentou escores mais baixos que o bem-estar religioso, sendo significativamente menor entre os pacientes ansiosos e depressivos, o que repercutiu para um menor bem-estar espiritual total também nesse grupo. Ou seja, em uma observação transpessoal, o misto de pensamentos relacionados a medo, dúvidas, incertezas e finitude, gera emoções e sentimentos conflituosos, que repercutem no bem-estar espiritual. Em uma amostra menor da mesma população desse estudo, foi verificado que o bem-estar espiritual em nenhum domínio apresentou relação com a esperança do paciente, provavelmente porque o que mais pesou foram justamente os sentimentos conflituosos, a despeito de qualquer esperança positiva ou até embotando desse sentimento21 .
A religiosidade, em específico a crença em Deus, repercute positivamente no encontro com um novo sentido para o processo cirúrgico, fortalecendo o enfrentamento6 . Os evangélicos apresentaram melhores resultados em ambas as dimensões da religiosidade avaliadas. Não encontramos outros estudos com amostras de populações similares que explicassem tal fenômeno e o objetivo deste trabalho não é conjecturar acerca de grupos religiosos. Em todas as dimensões do bem-estar espiritual, evangélicos também apresentaram escores ligeiramente maior que católicos, apesar de não ser estatisticamente significativa a diferença. Destes resultados, pode se inferir que os evangélicos tinham maior religiosidade, ou seja, maior relação com a religião em suas vidas, mas que isto não se traduzia significativamente em melhores resultados de bem-estar espiritual.
Os pacientes mantiveram o bem-estar espiritual elevado, a despeito das crises que vivenciavam ao esperar pela cirurgia cardíaca, das mudanças com o internamento e com o pós-alta e do medo comum à experiência. O domínio bem-estar existencial apresentou valor médio inferior ao observado para o domínio bem-estar religioso, provavelmente em virtude das crises e medos relacionados à cirurgia cardíaca, aos riscos e às mudanças, fatores que estão também na gênese dos sintomas de ansiedade e da depressão nestes pacientes. No entanto, os elevados escores de religiosidade mantiveram a média de bem-estar espiritual acima do corte para ser considerado elevado.
Em relação às limitações do estudo, pode-se considerar o fato de a amostra se referir a apenas um hospital. O exercício de compreensão de fenômenos mensurados de forma quantitativa na perspectiva de uma teoria de enfermagem pode ser considerado um fator limitante quando apenas um pesquisador que se debruça sobre a mesma para essa análise. Além disso, o fato de não haver uma fórmula pronta para a realização de tais inferências, nem instrumentos validados para avaliação dos construtos de religiosidade e bem-estar espiritual na perspectiva da teoria, também pode ser considerado uma limitação do estudo.
CONCLUSÕES
Jean Watson afirma que o enfermeiro é co-participante no processo de cuidar, considerando-o sempre na centralidade do cuidado, também valorizando a família no processo e reconhecendo que várias ciências e profissionais estão envolvidos no processo de cuidar. Para a teorista, cuidar requer elevada consideração e reverência pela pessoa e pela vida humana, o mundo subjetivo-interno e subjetivo-transcendente e como ela compreende a condição saúde-doença, dando ênfase ao indivíduo na aquisição de maior autoconhecimento, autocontrole e preparação para o autocuidado.
A teorista ensina que para uma relação transpessoal do cuidar se estabeleça, o enfermeiro deve ter capacidade de compreender e corretamente detectar sentimentos e a condição íntima do outro6 , 9 . Neste sentido, o presente estudo trouxe evidências de como aspectos psicoespirituais no pré-operatório de cirurgia se correlacionam entre si, impactando no bem-estar espiritual vivenciado pelo paciente, ofertando mais subsídios aos enfermeiros envolvidos na assistência a pacientes nesse período reconhecerem necessidades de cunho emocional, social e espirituais.
Os resultados apontam que os pacientes utilizam a religiosidade de forma significativa para manterem o bem-estar espiritual no pré-operatório. Ou seja, as crises existenciais vivenciadas pelos pacientes diante da cirurgia cardíaca, envolvendo as restrições e mudanças impostas e o desconhecido, impactam na manutenção do bem-estar, na sua dimensão espiritual, que é, numa análise transpessoal, uma dimensão da saúde integral do individuo.
Pesquisas futuras, bem delineadas, devem investigar até que ponto estes fatores psicoespirituais podem interferir nos parâmetros clínicos, inclusive no sucesso da cirurgia e da recuperação cirúrgica, seguindo os caminhos que a compreensão do fenômeno na perspectiva do cuidado transpessoal de Watson nos abre.