Introdução
A Sociologia considera o uso da fotografia como um documento importante por ser flagrante e revelar as insuficiências da palavra. Mesmo que também insuficiente, a fotografia oferece uma riqueza de informação visual, sendo um complemento à palavra falada, escrita, depoimentos e outras formas verbais (Martins, 2017). A fotografia oferece possibilidades distintas de 299 utilização, sendo a primeira delas calcada no estudo da imagem existente (histórica e memorial) encontrada em documentos ou outros meios de divulgação. A outra possibilidade se baseia na utilização da prática fotográfica para a construção de narrativas visuais.
De acordo com Martins (2017), a fotografia tomada por um estranho muitas vezes pode inibir as pessoas retratadas e a naturalidade dos eventos, revelando menos que a realidade. De maneira oposta, a relação das pessoas ao serem fotografadas por pessoas comuns ao seu meio pode revelar a espontaneidade. Além disso, o ato de fotografar pode também proporcionar uma rica experiência para quem o executa, o que pode ser comprovado no relato da experiência proposta pela escritora americana Esther Cohen, que convidou alguns trabalhadores a registrar em fotografias suas rotinas de vida nos Estados Unidos, no Projeto intitulado Unseen America (Hedges, 2003). Segundo ela, babás, técnicos de manutenção, cuidadores e outros prestadores de serviço, sendo a maioria imigrantes, puderam, através da experiência de fotografar, expressarem seus sentimentos, desejos e necessidades através das imagens. Cohen afirma que os participantes puderam demonstrar, através da atividade, seu desejo de fazer parte de uma sociedade da qual não se sentem presentes. Nas fotografias também foi possível identificar sentimentos que esses trabalhadores possuem, mas que muitas vezes não tem voz diante da sociedade.
As histórias que essas pessoas escrevem são incríveis e emocionantes (...) São histórias que não são contadas em grande parte. Esses trabalhadores nunca chegam às aulas e se perguntam se têm algo a dizer. Eles só querem aprender como dizê-lo. (Cohen citado em Hedges 2003).1
Ao oferecer a esses trabalhadores a possibilidade de se expressarem, foi dado a eles muito mais do que fotografias; como afirma Cohen (citado em Hedges 2003), foi lhes dada a possibilidade de contarem suas histórias, ocuparem um espaço de cidadania e se sentirem parte de uma comunidade. De fato, a fotografia carrega em seu histórico diversos momentos em que a cidadania foi concretizada a partir do registro de imagens e momentos. A fotografia assumiu a função de "testemunha ocular" de fatos sociais, tornando os processos cidadãos possíveis e eficazes. Outra característica da fotografia é o seu uso como ferramenta de emancipação pessoal, de construção discursiva e de expressão. Ainda que para alguns a fotografia se limita a uma estética artística, e para outros um conteúdo jornalístico, ela é um exercício para a mente, assim como outros processos criativos. O seu uso colabora com o desenvolvimento de percepções espaciais, estéticas e narrativas que colaboram com outros processos em paralelo, como a educação. Finalmente, acredita-se que os resultados desse compartilhamento de funções acabam por corroborar com o desenvolvimento profissional das pessoas, já que os aspectos colaborativos da fotografia auxiliam em uma atividade pessoal, profissional ou social.
E nesse sentido é que o presente artigo propõe a utilização de práticas fotográficas como ferramenta didática dentro e fora de sala de aula, com o propósito de utilizar um recurso atual, e que muitas vezes já faz parte do cotidiano do aluno, como instrumento para expressão pessoal e construção da cidadania. Obviamente, tornou-se necessária uma compreensão sobre as mudanças do ecossistema midiático e das linguagens que circundam seus ambientes. Neste sentido, além de promover um resgate histórico sobre o conceito, o estudo avançou na detecção de novas metáforas, alcançando aquela que explica e justifica o potencial narrativo da imagem na contemporaneidade.
De fato, a ecologia dos meios é dinâmica e está carregada de alterações sociais e comportamentais, em diversos casos por causa de desenvolvimentos tecnológicos. Porém, em outras situações, são as alterações sociais e comportamentais que provocam o desenvolvimento tecnológico, ou seja, os cidadãos, a partir de seus desejos e interesses, determinam para onde deve ir o desenvolvimento tecnológico. A sociedade não é, necessariamente, refém das iniciativas tecnológicas e, por consequência, dos interesses comerciais. Ela também tem voz, o que se observa cada vez mais no âmbito do estudo de meios e, por sua vez, do uso da fotografia como narrativa. Diante disso, torna-se fundamental pensar em processos educacionais e formativos que adotem a fotografia como ferramenta do fazer, do observar, do interpretar e do realizar.
Por essa razão, o artigo tem como o objetivo principal demonstrar, a partir de uma reflexão conceitual baseada na pesquisa bibliográfica como metodologia, que atividades fotográficas vão ao encontro dos preceitos apontados pelo educador Paulo Freire no livro Pedagogia da autonomia, em que são enumeradas as condições para a formação do indivíduo autônomo, crítico e curioso sobre seu ambiente, através de um ensino humanizado e participativo. Para tanto, adotou-se um procedimento metodológico apoiado na pesquisa bibliográfica complexa que resultou em apontamentos direcionados à formação educacional e profissional baseado no uso de imagens.
Cabe-nos ressaltar que esses apontamentos colaboram não somente na compreensão deste importante teórico brasileiro como também reforçam possibilidades na formação profissional contemporânea, indicando uma importante capacidade formativa no âmbito da narrativa imagética, característica interdisciplinar nos tempos atuais. Espera-se que, através deste estudo, seja possível corroborar com a formação de novos perfis profissionais na era da tecnologia digital, com apoio especial da fotografia, que se torna cada vez mais presente na vida da sociedade contemporânea.
Media Ecology e suas metáforas
A questão levantada neste artigo está diretamente relacionada ao estudo de meios, pois a educação e a atividade profissional são proporcionadas pelos meios de comunicação. O livro, por exemplo, é um meio de comunicação. Por isso, para o desenvolvimento deste estudo considerou-se fundamental uma imersão em um conceito atualmente adotado por diversas áreas do saber: a ecologia dos meios. Entretanto, tal conceito foi criado há quase meio século. Alguns teóricos consideram McLuhan como o criador do termo. Mesmo na Media Ecology Association, grupo criado em 2000 a partir de uma proposta do próprio Neil Postman, há teóricos que concedem a McLuhan a autoria (Gencarelli 2009). Entretanto, o termo sem a teoria se transforma em palavras perdidas. Por isso, Neil Postman desenvolveu conceitos e ideias que sustentaram a Ecologia dos Meios durante décadas. Essas ideias proporcionam ainda mais importância na contemporaneidade.
Mas o caminho traçado e seguido pelo grupo criado por Postman em Nova Iorque, e que contou com a presença constante de McLuhan, surgiu antes mesmo do jogo de palavras. Ele já havia sido desenhado outros teóricos. Como defende Scolari (2015, 17), "o termo não nasceu por geração espontânea nem pela genial iluminação momentânea de McLuhan ou Postman". Para Scolari, inclusive, o maior contribuinte para o surgimento dessa problemática (sem um problema não há pesquisa, ou algo a ser solucionado) foi o canadense Harold Innis. Como defende o autor, "a importância do aporte de Innis à Ecologia dos Meios está fora de discussão: foi este canadense o primeiro a contar a história da humanidade colocando os processos de comunicação no centro de seu relato" (Scolari 2015, 21). Ainda assim, é fundamental reconhecer o papel de Postman no processo.
Nos primeiros anos de desenvolvimentos de pesquisa no Doutorado em Ecologia dos Meios da Universidade de Nova York, Neil Postman conformou uma visão ecológica, crítica e ética do sistema midiático norte-americano. Segundo Postman, a mudança tecnológica não é aditiva, fundamental, senão ecológica, natural. Sobre isso, explicava com o exemplo de uma gota de tinta vermelha que cai em um recipiente com água. Nele, o líquido se dissolve, colorindo cada molécula. Isso era o que Postman definia como mudança ecológica, e aplicava o conceito às tecnologias que surgem, e, misturando-se com os meios e a sociedade, criam uma sociedade midiatizada.
Logo das primeiras pesquisas, surgiu uma metáfora ecológica aplicada aos meios, trazendo duas interpretações fundamentais: os meios como ambientes e os meios como espécies. Nessa diversidade de interpretações, Postman se posicionou nos ambientes, enquanto McLuhan, influenciado pelas ideias de Innis, colocou-se no campo das espécies. Essas duas ideias - os meios como ambientes e os meios como espécies - funcionaram como linhas de investigação no doutorado em Ecologia dos Meios durante mais de uma década, direcionando os olhares e as preocupações de seus pesquisadores em busca da concepção da teoria em si.
A partir dos meios como ambientes, a ecologia dos meios se sintetiza em uma ideia básica: as tecnologias - que comportam as tecnologias da comunicação, desde a escrita até os meios digitais - geram ambientes que afetam o cotidiano dos sujeitos que as utilizam. Podemos, na contemporaneidade, localizar os meios sociais e os espaços virtuais, inclusive os conceitos do não-lugar propostos por Marc Augé (2009), como ambientes ecológicos midiáticos. Para Postman, inclusive, a palavra ecologia implicava no estudo dos ambientes: sua estrutura, conteúdo e impacto sobre as pessoas.
Já nos meios como espécies encontramos outros olhares sobre a pesquisa no campo da ecologia dos meios. A eles, importavam mais as tecnologias. McLuhan e seus discípulos, influenciados por Harold Innis, desenvolveram um enfoque holístico que integrou a evolução dos processos de comunicação e os processos socioeconômicos, observando que os resultados surgiam a partir da tecnologia. Defendendo essa metáfora, McLuhan (1964, 78) declarou que "os meios interagiram entre si. A rádio mudou a forma das notícias tanto como alterou a imagem nos filmes sonoros. A televisão causou mudanças na programação da rádio, etc".
Então, oito anos depois de criado o programa de Doutorado em Ecologia dos Meios, Neil Postman publicou, pela primeira vez, uma definição consolidada e resultante de pesquisas sistematizadas sobre o tema. A ideia foi debatida e posteriormente considerada base de uma teoria: a teoria da Ecologia dos Meios. Segundo o autor:
A ecologia dos meios é o estudo dos ambientes humanos. Se preocupa por entender como as tecnologias e técnicas de comunicação controlam forma, quantidade, velocidade, distribuição e direção da informação: e como, por sua vez, essas configurações ou preferências de informação afetam as percepções, valores e atitudes das pessoas. (Postman 1979, 186)
Se atualizarmos essa proposta, perceberemos diversos pesquisadores contemporâneos que, ainda que não definidos, ou autodenominados ecologistas dos meios, mereceriam tal consideração. Estão no grupo Dan Gillmor (2005), com a ideia de que "nós somos os meios"; George Landow (2009), com a proposta de hipertexto e hipermídia como estruturas narrativas; George Siemens (2006), com o conceito de conectivismo; Henry Jenkins (2009; 2001), com a profusão da ideia de narrativa transmídia; e Manuel Castells (2013), com a construção de redes sociais em prol de um mundo mais esperançoso. Esses autores trazem em suas ideias vários dos conceitos propostos pelos pioneiros nos estudos da ecologia dos meios, ainda que não os reconheça com clareza. Os teóricos, assim como suas pesquisas, surgem em um momento em que a ecologia dos meios se transformou de sobremaneira, considerada pelos ecologistas midiáticos contemporâneos como a "nova ecologia dos meios". Postman foi um dos responsáveis pela proposta de estudar a nova ecologia midiática, que surgia no final do século passado.
Porém, nos últimos anos, os investigadores envolvidos na ecologia dos meios demonstraram um particular interesse nas novas formas multiplataforma e interativas de comunicação. Em 1995, durante uma conferência (Gencarelli 2009), Neil Postman problematizou sobre a "infoxicação" sofrida pela sociedade naquele momento - os primeiros anos da internet comercial. Para o autor, as pessoas não sabiam o que fazer com tanta informação. Não havia um princípio lógico de organização e seleção. De certa maneira, isso é vivido pela sociedade contemporânea até os dias de hoje, e com mais intensidade.
A partir das propostas de Postman, surgiu uma terceira metáfora: os meios depois do software. Essa preocupação, apresentada por Lev Manovich (2005) na obra El lenguaje de los nuevos medios de comunicación: la imagen en la era digital, originalmente publicada pelo autor em 2001, em inglês, trazia como uma preocupação o estudo da cultura do software. Um estudo justificado pelo surgimento dos novos meios. Para Manovich (2005), os novos meios exigiam uma nova etapa no estudo sobre a teoria dos meios, cujas origens eram suportadas nas pesquisas de Innis, Postman e McLuhan, na década de 1960.
Neste mesmo cenário, discípulos de Postman e McLuhan dedicaram seus estudos para compreender a sociedade e os meios. Paul Levinson (2012) propôs a existência não de novos meios, mas de "novos novos" meios, de tão novos e transformadores que são. Valerie Peterson (2012) observou a sociedade e os meios em um espaço comportamental. Para a autora, o mundo vive uma nova relação entre sexo e comunicação, transformando a essencial relação íntima humana em algo totalmente diferente do que foi vivido na história da humanidade, mesmo quando essa já era midiatizada.
Também resultante dessa nova metáfora que envolve "ecologia" e "meios", em 2013, Lev Manovich, que é matemático e artista digital, publicou um novo estudo, resultante de diversos trabalhos no campo da investigação aplicada na ecologia dos meios: Software takes command, livro que discute a importância do software na nova ecologia dos meios. Na obra, Manovich resgata a participação dos softwares nos processos midiáticos. Não mais os softwares de automação, mas aqueles direcionados ao cotidiano da sociedade contemporânea, que fazem parte da nossa rotina e, de certa maneira, provocam uma dependência digital.
Nessa nova ecologia dos meios, diversas empresas, como Google e Facebook, transformaram a relação entre a sociedade e os meios -a ecologia dos meios-, oferecendo aplicações aparentemente grátis e que nunca foram oficialmente concluídas. Somos, para Manovich (2013), cobaias de empresas de software que lançam seus produtos, oferecidos em versões Beta.
O olhar do autor em sua obra nos leva a observar uma dependência do software pela sociedade contemporânea, especialmente em situações de ecossistema midiático. Com a Internet das Coisas, essa dependência será ainda mais expressiva. Entretanto, autores engajados nos estudos sobre tecnologia, como Landow (2009) e Jenkins (2009), ou preocupados com a sociedade, como Castells (2013), nos trazem opiniões contrárias à proposta por Manovich, o que pode indicar a necessária criação de uma quarta metáfora: o cidadão criador. O próprio Manovich aponta para isso na obra:
Dez anos depois, a maioria dos meios se transformou em novos meios. Os desenvolvimentos dos anos 90 se disseminaram a centenas de milhões de pessoas que estão escrevendo em blogs, publicando fotos e vídeos em sites sociais e usando de forma livre (ou quase) ferramentas de software de 305 produção e de edição que há alguns anos custavam dezenas de milhares de dólares. (Manovich 2013, 4)
Obviamente, trata-se de uma criação compartilhada. Podemos definir esse cenário como um contrato, em que o cidadão define as suas necessidades e os meios contemporâneos, agora também produtores de software, as desenvolvem. A partir das versões Beta, os cidadãos validam aqueles produtos, devolvidos à sociedade em versões mais sofisticadas, algumas com valores sendo cobrados. Entretanto, a remuneração a essas empresas não está na compra do software, senão na utilização dos mesmos e a produção de dados pelos usuários.
Para compreender essa lógica pensemos na informática. Nesta pode-se apoiar a consolidação dessa nova metáfora através de algoritmos planejados para obter resultados na nova ecologia dos meios. Nos transferimos da teoria de meios para a teoria do software por trás dos meios. Para tanto, chegamos à interface e às bases de dados.
E encontramos, então, com uma quinta metáfora nessa ecologia dos meios: a ecologia dos meios "appificados". Podemos elencar vários desses produtos oferecidos através de aplicativos desenvolvidos em formatos Beta e disponibilizados à sociedade gratuitamente, como proposto por Manovich (2013). Porém, esses mesmos produtos são novamente oferecidos com incrementos tecnológicos a preços que podem acompanhar a cultura iTunes, com valores de até cinco dólares, ou com preços mais altos, ainda que acessíveis. Ressalto que esses meios "appificados" estão, em sua maioria, conectados full time com a internet, criando uma porta de observação do usuário pelo software.
E, para observar, nada melhor do que a imagem como objeto. Em sua recente obra, Instagram and the contemporary image,Manovich (2017) apresenta o aplicativo como espaço de reorganização de uma sociedade que estabelece relações através de imagens. Cidadãos que resgatam a importância da imagem nos processos de construção de histórias pessoais. Para o autor surgem perguntas sobre o aplicativo:
O que é o Instagram? Isso pode ser usado para investigações dos meios visuais contemporâneos ou somente uma simples plataforma? Que vantagens, se existe alguma, ele oferece para a pesquisa em cultura visual? (Manovich 2017, 11)
Essas indagações de Manovich ao apresentar o Instagram como espaço ecologicamente midiático nos fazem pensar em uma sexta metáfora: a narrativa imagética. Obviamente, essa é uma metáfora que está surgindo, mas que compartilhamos, Manovich e nós, em nossas pesquisas. O autor está mais preocupado com o software por trás da relação social, enquanto nos preocupamos com a linguagem midiática construída a partir das imagens. Podemos pensar, então, que, se regressarmos quatro décadas no tempo, Manovich seria discípulo de McLuhan, valorizando a tecnologia (neste caso, o software) como espécie, enquanto nós seguiríamos os passos de Postman, mais preocupados com o ambiente e sua relação com a sociedade.
Paulo Freire e a pedagogia da autonomia
Simultaneamente ao debate sobre ecologia dos meios, consideramos fundamental pensar nos processos de construção do cidadão autônomo. Ele é parte fundamental desse panorama ecossistêmico do qual falamos no estudo. Para tanto, apoiamos nossos olhares nas ideias de Paulo Freire, que no livro A pedagogia da autonomia, apresenta um modelo de educação que enfatiza a formação integral do ser. São apresentadas as condições para a formação de um bom educador e, consequentemente, um aluno consciente de seu papel na sociedade da qual faz parte, curioso e interessado, atuante e participativo.
Tal modelo de educação, para Freire, parte da premissa de que a educação não deve ser um depósito de conhecimento, em que o saber é propriedade de apenas uma das partes (o professor), mas sim uma prática construída a partir de múltiplos saberes, cuja troca é essencial para a formação de educador e educando simultaneamente. A relação ensino-aprendizagem entre docente e discente é parte de um processo em que "quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender", (Freire, 1996). Este fluxo de aprendizagem ocorre de forma contínua, à medida que não concerne ao docente todo o conhecimento, assim como o discente não é totalmente ignorante. Além disso, o autor reforça a importância da formação sobre o treinamento simplesmente. Na formação encorajada pelo educador, o conhecimento se dá de maneira contínua, crescente e holística.
O simples fato de estar no mundo, para o autor, já é motivo para buscar um olhar crítico, pois não é possível estar no mundo para apenas constatar. Nesse sentido, a educação deve propor ao aluno o comprometimento com um mundo que não é distante, mas presente e real, em que é possível realizar escolhas, intervenções e tomar decisões. Ao educador cabe provocar nos alunos as reflexões sobre as mudanças necessárias, convicto das possibilidades de mudanças.
Freire afirma que "o educador democrático não pode negar-se o dever de, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão". A "promoção" da ingenuidade, relacionada à curiosidade epistemológica, resulta de certo saber.
A abordagem do autor vai ao encontro da consolidação da autonomia do aluno, seja no campo educacional ou no dia-a-dia, fora da sala de aula e em contato com os problemas do seu cotidiano. Freire destaca a importância da postura do professor, ao estimular a ruptura com possíveis padrões erroneamente assentados. O estímulo parte também da premissa de que o educador tem convicção das mudanças possíveis através da educação. O desafio, como afirma Freire (1996) é desafiar o educando a produzir sua compreensão do que comunica, a pensar sobre o fazer e a elaborar sua reflexão crítica sobre a prática, o que deve ser feito em comunhão com o educador.
A busca da autonomia pelo fazer fotográfico
A fotografia faz parte de nossa rotina. Se antes impressa e consumida em jornais e revistas, anúncios publicitários e outros, hoje sua presença é ainda mais universal, acessada principalmente através das novas tecnologias digitais. Sua produção também é mais democrática, graças ao desenvolvimento das câmeras fotográficas em celulares e a facilidade de compartilhamento de imagens por meio das novas formas multiplataforma e interativas de comunicação.
O ato fotográfico associa uma série de competências durante o fazer fotográfico. Essas competências, que passam muitas vezes despercebidas, são inerentes à mais despretensiosa ação de fotografar algo ou alguém e serão examinadas no decorrer deste trabalho. É pensando no desenvolvimento dessas habilidades a partir da prática fotográfica que este artigo propõe sua utilização como ferramenta didático-pedagógica na sala de aula em disciplinas voltadas às humanidades, com o objetivo de auxiliar na formação do aluno.
A utilização da fotografia em sala de aula não é uma novidade. É possível encontrar diversos textos acadêmicos que relatam o uso das imagens fotográficas em sala de aula baseados em registros visuais já existentes, abordando a alfabetização visual, por exemplo. Há também atividades de produção de imagens a partir de algum conteúdo disciplinar, com foco no produto final. Lopes et al. (2013) relata uma experiência com estudantes da 1a a 3a série do ensino médio em um colégio de Londrina, em que foram desenvolvidas atividades de alfabetização visual e, posteriormente, de produção de imagens fotográficas no interior da escola em dois dias. Como resultado das atividades, os alunos demonstraram envolvimento com a comunidade e, principalmente, intensa reflexão sobre os problemas e soluções possíveis para o ambiente escolar. Uma amostra do que as atividades fotográficas podem alcançar. Neste artigo, a proposta principal é que a abordagem seja feita centrada no aluno e não no conteúdo disciplinar, a partir das experiências pessoais do educando, utilizando as práticas fotográficas mediadas pelas tecnologias digitais acessíveis nos celulares.
Unir fotografia e tecnologia em sala de aula é possível atualmente, pois os aparelhos celulares estão presentes na vida de grande parte das pessoas. Pesquisas apontam que em abril de 2019 havia no Brasil 235 milhões de celulares ativos, número maior que a população total do país (Meirelles, 2019). Por esse motivo, é fácil deduzir que os aparelhos celulares estão também dentro das salas de aulas, sendo utilizados por alunos para acessos a conteúdo na internet bem como para a produção desse conteúdo. As redes sociais que comportam imagens, como o Instagram, por exemplo, recebem milhões de fotografias, diariamente, uma considerável parte produzida pelos próprios usuários.
Essa energia criativa pode ser estrategicamente utilizada pelo professor para o desenvolvimento das competências descritas por Paulo Freire, na formação do aluno curioso, com visão crítica, autônomo e consciente de seu papel na sociedade. Mas como seria possível promover o engajamento do aluno, provocando o espírito crítico acerca de sua realidade? É possível estabelecer uma conexão com a realidade a partir das temáticas exploradas no decorrer da disciplina. A partir de conteúdos apresentados em sala de aula, o aprendiz pode ser convidado a identificar situações em que vive no dia-a-dia, e registrá-las em imagens com o celular. A ideia é que seja gerado um estado de atenção constante, aguçando o senso crítico perante situações do cotidiano.
Freire afirma que a leitura de mundo precede a leitura da palavra. Logo, o primeiro ponto a ser abordado é que a fotografia pode ser uma forma de leitura de mundo a partir da experiência pessoal de cada aluno. A utilização da fotografia permitiria ao aluno apreender parte de sua experiência real e levá-la para a sala de aula, onde pode apresentar ao professor (e também ensinar) e aos colegas, além de refletir sobre o que decidiu fotografar. A reflexão crítica sobre a prática pressupõe, segundo Freire (1996), a formação crítica do docente e do discente, pois "o educador democrático não pode negar-se o dever de, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão".
A proposta de estimular atitudes inquietas, "rigorosamente curiosas" e persistentes tem grande afinidade com os processos fotográficos, pois mesmo quando coletivos, possuem momentos de tomadas de decisão individuais, resultantes da busca do olhar pelo novo. Os educandos são reais sujeitos da construção do conhecimento. O respeito aos saberes dos educandos inclui também o respeito à sua história, suas experiências de vida e como tudo isso foi construído em torno do aluno aprendiz. O ensino dinâmico proposto com a utilização da fotografia como ferramenta didática vai de encontro ao "formar" e se afasta do que Paulo Freire chama de conhecimento "bancário", em que o conhecimento é apenas depositado, desestimulando a criatividade do educando.
A prática do exercício fotográfico poderia ser inserida na concepção do "pensar certo", demonstrado por Freire como "algo que se faz e que se vive enquanto dele se fala com a força do testemunho." Para o autor, a experiência individual é fonte para todo o aprendizado humano dentro e fora de sala de aula. O viver do aprendiz é indissociável ao indivíduo. Conforme o autor, "pensar certo implica a existência de sujeitos que pensam mediados por objeto ou objetos sobre que incide o próprio pensar dos sujeitos". Há um objeto mediador durante o ato de pensar certo, que pode ser ocupado pelo objeto câmera fotográfica/celular, na importante função de ferramenta de interposição entre aprendiz e a vida, com o intuito de comunicar. O desafio, como afirma Freire (1996) é estimular o educando a produzir sua compreensão do que comunica, a pensar sobre o fazer e a elaborar sua reflexão crítica sobre a prática, o que deve ser feito em comunhão com o educador.
Envolver os alunos na construção do conhecimento, que se faz de maneira holística, é um dos principais objetivos de Freire no livro estudado. Tal prática exige ao educador estar aberto à mudança e à aceitação do diferente, pois a formação prescinde a troca de conhecimentos, culturas e vivências.
O "formar" o indivíduo revela-o ser pensante, transformador, criador e capaz, que contesta e possui pensamento crítico. Freire aponta a importância de sentir-se não como objeto, mas sujeito da História.
O ato de fotografar exige também que o aluno esteja atento e tome decisões acerca do quê, como e porquê fotografar, exigindo que, individualmente, acredite em seu potencial para a construção da narrativa visual. O resultado, compartilhado em sala de aula, pode revelar a pluralidade cultural dos alunos, promovendo a igualdade e a aceitação das diferenças, ao mesmo tempo em que permitiria a cada aluno expressar-se de acordo com suas crenças e visão crítica de mundo. Poderia, ademais, ser uma estratégia para a diminuição do preconceito e promoção do diálogo.
Além da tomada de decisão, o fazer fotográfico traz consigo a importância do estudo das referências visuais, que são encontradas na História da Arte e em toda a História visual humana. Estimular o aluno na compreensão de que todos são iguais e ajudam a construir a história, pois assim como na experiência de Cohen (citado em Hedges 2003), necessário é conhecer o mundo, intervir, como seres históricos, encontrar o seu lugar no mundo e na comunidade.
Por fim, as atividades de produção fotográfica estimulam a independência do aluno, a confiança em si mesmo e sua capacidade criativa, promovendo a autoestima e a sua autonomia. Uma autonomia inerente da sociedade na nova ecologia dos meios, onde a participação reconstrói o papel da cidadania por trás de cada ação midiática, em especial no uso da fotografia como expressão.
Conclusões
As reflexões de Paulo Freire contidas no livro "A pedagogia da autonomia" (1996), continuam atuais e se mostram um desafio na formação dos alunos ainda nos dias de hoje. Ocorre que diferentes metodologias de ensino e alternadas correntes políticas fazem com que o ensino infantil e adulto não possuam unidade e, consequentemente, não exista uma linearidade comum entre as etapas educacionais. Além disso, como afirma Gouvea (Saldaña, 2019), não há predominância de Freire em nenhuma diretriz educacional no Brasil.
Formar indivíduos conscientes de seu protagonismo na sociedade e que ocupem seu espaço pode ser interpretado como ameaçador por governos autoritários, razão pela qual muitas vezes os métodos de Freire foram rechaçados. Mas as tendências de empoderamento discutidas no momento atual demonstram que o caminho da autonomia é necessário para a construção de uma sociedade mais justa. A proposta de estimular atitudes inquietas, "rigorosamente curiosas" e persistentes tem grande afinidade com os processos fotográficos, pois mesmo quando coletivos, possuem momentos de tomadas de decisão individuais, resultantes da busca do olhar pelo novo. Os educandos são reais sujeitos da construção do conhecimento. O respeito aos saberes dos educandos inclui também o respeito à sua história, suas experiências de vida e como tudo isso foi construído em torno do aluno aprendiz.
Torna-se fundamental compreender e reconhecer o pertencimento destes jovens citados por Paulo Freire a um ecossistema midiático diferente do estudado pelo autor. Trata-se de um grupo midiatizado em sua essência, que adota os meios digitais para comunicar-se, para manifestar-se, para relacionar-se. É um grupo social que adota os meios contemporâneos para consolidar a sua existência. Nesta inserção midiática, encontra-se a narrativa imagética como fundamental para o desenvolvimento dos processos de intersecção social, reunindo fotografias, infográficos e todas as alternativas de uso da imagem como representação. Por esse motivo, considera-se, a partir deste estudo, tão importante o ensino da fotografia nas formações básicas dos cidadãos. Tal ensino poderá potencializar a capacidade discursiva e interpretativa destes jovens, cada vez mais conectados e possuidores de dispositivos tecnológicos capazes de construir essas narrativas. Pareceos um retrocesso desconsiderar essa característica, impondo aos jovens um método educacional apoiado em métodos e estratégias tradicionais, contrariando as propostas de Paulo Freire e de outros tantos educadores.
A fotografia, aplicada estrategicamente em sala de aula, pode ser utilizada para o desenvolvimento de habilidades diversas entre os alunos. Partindo-se dos princípios que regem o ato de fazer fotografias, é possível explorar individual ou coletivamente as competências necessárias, ao mesmo tempo em que o aluno desenvolve o conhecimento curricular tradicional. Em uma sociedade onde a metáfora da narrativa imagética é uma realidade, pensar em processos educacionais com base na imagem é fundamental. Trata-se de uma transformação conforme à contemporaneidade, onde a sociedade tem uma relação direta com a fotografia. Uma sociedade que carrega em seus telefones celulares suas microcâmeras fotográficas e qualquer motivo justifica uma nova foto digital.