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Revista de Estudios Sociales

Print version ISSN 0123-885X

rev.estud.soc.  no.90 Bogotá Oct./Dec. 2024  Epub Sep 27, 2024

https://doi.org/10.7440/res90.2024.04 

Dossier

Entre a tristeza e a ira: emoções em disputa nas narrativas sobre o crime de uma mulher (São Paulo, Brasil, 1939)*

Entre la tristeza y la ira: emociones en disputa en las narrativas sobre un crimen cometido por una mujer (São Paulo, Brasil, 1939)

Between Sadness and Anger: Emotions in Dispute in the Narratives of a Crime Committed by a Woman (São Paulo, Brazil, 1939)

Yonissa Marmitt Wadi** 

**Doutora em história pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil). Professora associada da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Brasil). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (Brasil). Seus interesses de pesquisa centram-se nas narrativas sobre a loucura e sobre o ponto de vista de sujeitos com sofrimento psíquico (autobiografias, escritas de si), em instituições psiquiátricas, na assistência psiquiátrica e na história das mulheres e dos gêneros. Últimas publicações: “Un cuerpo para Maura Lopes Cançado”, em Literatura, medicina y escritura en Iberoamérica, editado por Maya González, José Antonio e Ana Laura Zavalo Díaz, 73-100 (Cidade do México: UNAM, 2023); e “Derrumbe y reconstrucción de una esperanza terapéutica. El hospital Colonia Adauto Botelho en Paraná, 1954-1995”, em De manicomios a instituciones psiquiátricas. Experiencias en Iberoamérica, siglos XIX y XX, editado por Andrés Ríos Molina e Mariano Ruperthuz Honorato, 581-640 (Cidade do México; Madri: UNAM; Sílex ediciones, 2022). https://orcid.org/0000-0002-0224-8478 | yonissa.wadi@unioeste.br


Resumo:

Em 1939, Marília, uma mulher de 30 anos, brasileira, casada, dona de casa, residente em São Paulo, matou seu amante, Armando, com machadadas e tiros. Apresentou-se à polícia e foi internada por seu cunhado no Sanatório Pinel, instituição psiquiátrica voltada aos grupos sociais mais abastados da cidade. As fontes de pesquisa foram o documento clínico - que inclui relatório médico, exames laboratoriais, receituário, uma carta escrita por ela - e notícias de jornais paulistas que repercutiram o crime. Com referenciais teórico-metodológicos da história sociocultural das emoções, da história das mulheres e dos gêneros, e da história da loucura e da psiquiatria, proponho, neste artigo, reconhecer que emoções emergiram nos diferentes documentos que nos apresentam a história de Marília. O objetivo principal foi problematizá-las, não no sentido de discutir seus significados específicos, mas sim de entender o que elas produziram. Busquei compreender como o rol delas, enunciado nas diferentes narrativas que contraponho, atuaram por meio de significados compartilhados, no sentido de construir um acontecimento e um sujeito, Marília. As diferentes narrativas sobre a vida e o crime de Marília, inclusive a dela mesma, destacaram como centrais duas emoções: a tristeza e a ira. Isso mostrou que estas operam no interior de um dispositivo emocional que estabelece lugares, possibilidades e limites para as mulheres a partir da percepção de seus corpos e mentes interconectados, dos marcadores sociais da diferença e dos discursos dos saberes expertos, além disso, que as resistências emocionais são constantes.

Palavras-chave : crime; emoções; gênero; loucura; mulheres; psiquiatria

Resumen:

En 1939, Marília, una brasileña de treinta años, casada, ama de casa y residente en São Paulo, mató a su amante, Armando, a hachazos y disparos. Se presentó a la policía y fue ingresada por su cuñado en el Sanatório Pinel, una institución psiquiátrica para los grupos sociales más pudientes de la ciudad. Las fuentes de la investigación fueron documentos clínicos -incluidos un informe médico, pruebas de laboratorio, recetas y una carta escrita por ella- y noticias de los periódicos de São Paulo que informaron sobre el crimen. Utilizando marcos teóricos y metodológicos de la historia sociocultural de las emociones, de la historia de las mujeres y del género, y de la historia de la locura y de la psiquiatría, me propongo en este artículo reconocer qué emociones emergen en los diferentes documentos que nos presentan la historia de Marília. El objetivo principal es problematizarlas, no para discutir sus significados específicos, sino para comprender lo que producen. Busco entender cómo el conjunto de tales emociones, enunciadas en los diferentes relatos que contrasto, actúan a través de significados compartidos, en el sentido de construir un acontecimiento y un sujeto, Marília. Las diferentes narrativas sobre la vida, incluida la suya propia, y el crimen cometido por ella destacan dos emociones como centrales: la tristeza y la ira. Esto demostró que estas operan dentro de un dispositivo emocional que establece lugares, posibilidades y límites para las mujeres a partir de la percepción de sus cuerpos y mentes interconectados, los marcadores sociales de la diferencia y los discursos de los saberes expertos, y que las resistencias emocionales son constantes.

Palabras clave: crimen; emociones; género; locura; mujeres; psiquiatría

Abstract:

In 1939, Marília, a thirty-year-old Brazilian housewife, residing in São Paulo, killed her lover, Armando, with an axe and gunshots. She turned herself in to the police and was admitted by her brother-in-law to the Pinel Sanatorium, a psychiatric institution catering to the city's more affluent social groups. The sources for this research include clinical documents-such as a medical report, lab tests, prescriptions, and a letter written by Marília-as well as newspaper articles from São Paulo that reported on the crime. Drawing on theoretical and methodological frameworks from the socio-cultural history of emotions, the history of women and gender, and the history of madness and psychiatry, this article identifies the emotions that surface in the different documents recounting Marília's story. Our primary objective is to analyze these emotions, not to explore their specific meanings, but to understand what they produce. I aim to comprehend how the collection of these emotions, as articulated across the various narratives I examine, operates through shared meanings to construct both an event and a subject: Marília. The different narratives about her life, including her own, and the crime she committed, highlight two central emotions: sadness and anger. This analysis demonstrates that these emotions operate within an emotional framework that defines places, possibilities, and limitations for women, grounded in the perception of their interconnected bodies and minds, social markers of difference, and expert discourses. It also reveals that emotional resistances are persistent.

Keywords: crime; emotions; gender; madness; psychiatry; women

Abertura

Alguma coisa acontece no meu coraçãoQue só quando cruza a Ipiranga e a avenida São JoãoÉ que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi...( Caetano Veloso, “Sampa”, 1978)

No dia 17 de outubro de 1939, um crime abalou a avenida São João, em São Paulo, hoje imortalizada pela letra de Caetano Veloso. Se bem que não se tratasse de um endereço localizado na esquina com a Ipiranga, como indica a epígrafe, ficava a cerca de 800 metros dali. Na época, a avenida São João era um dos locais mais movimentados da capital, um dos cartões postais da metrópole, que refletia sua modernidade, prosperidade e efervescência cultural. Na fervilhante São Paulo, uma mulher matou com machadadas e tiros de revólver seu amante e ganhou as páginas dos jornais de maior circulação da cidade. Mediante as notícias, sabemos que a mulher rumou tranquilamente, depois do crime, para a Central de Polícia, onde confessou ao delegado ter matado seu amante, sendo depois liberada.

Deparei-me com as notícias depois do meu primeiro encontro com Marília1, que ocorreu por meio do prontuário psiquiátrico de sua internação no Sanatório Pinel2. O curioso é que, nesse documento, apesar da menção ao crime, nada se fala do primeiro encontro de Marília com a polícia, como nada se fala da internação dela em uma instituição psiquiátrica, nos diários que reportam o acontecimento.

Que movimentos foram estes? Que circunstâncias levaram Marília da Central de Polícia, onde confessou seu crime, ao Sanatório Pinel, clínica psiquiátrica voltada para grupos sociais mais abastados? Que dispositivo emocional fez uma criminosa confessa ser internada em um hospício em vez de ser presa? Que emoções emergiram nos documentos que nos apresentam sua história? O que fizeram tais emoções com Marília? Foi o crime uma forma de resistência emocional ante o sofrimento emocional daquela mulher?

O objetivo central deste artigo é problematizar as emoções, como indicam as perguntas feitas, não no sentido de discutir seus significados específicos, mas sim de entender o que elas produziram, ou seja, como o rol delas, enunciado nas diferentes narrativas aqui contrapostas, atuaram por meio de significados compartilhados, no sentido de construir um acontecimento e um sujeito. Portanto, meu interesse centra-se não somente nas emoções experimentadas por Marília, conforme expressas em sua narrativa, mas também naquelas a ela imputadas em distintos âmbitos sociais, como o da imprensa ou do sanatório psiquiátrico.

Considero que as experiências de Marília, naquele tempo e lugar - a cidade de São Paulo no final da década de 1930 -, onde vigoravam um conjunto de emociones legitimadas, ou seja, havia um dispositivo emocional preponderante, alicerçado em marcadores sociais - como o gênero, a classe, a geração etc. -, moldou a superfície de seu corpo individual. Minha hipótese é que a movimentação de emoções, que geram um descompasso entre o que se consideravam emoções adequadas ao dispositivo vigente para o gênero feminino e as consideradas inadequadas, que entendo como resistência emocional, deflagrou o acontecimento central da trama histórica cujos fios sigo. Foi o descompasso entre diferentes emoções, em especial, a tristeza - relacionada com a acomodação a vida que cabia a uma mulher que deixara um casamento e filhos, para viver uma paixão com um homem também casado - e a ira - expressa ao cometer o assassinato do alvo dessa paixão -, que produziram o sujeito Marília, na sua própria acepção e na de seus observadores.

Duas noções são centrais na problematização proposta. A primeira delas é a de “dispositivo emocional”. Segundo López Sánchez (2013, 58) , em cada período histórico, “estratégias discursivas, institucionais e estéticas” são construídas e administradas, resultando em “um capital emocional” distinto para os gêneros. Ainda que os homens tenham algum capital emocional, as emoções estão ligadas intrinsecamente às mulheres, que são “representadas como estando ‘mais próximas’ da natureza, governadas pelos apetites, e menos capazes de transcender o corpo através do pensamento, da vontade e do julgamento”. Em uma perspectiva de longa duração associada, primeiro ao pecado e, em seguida, à imperfeição orgânica, ser emocional significa que o julgamento das mulheres é afetado, “significa ser reativa em vez de ativa, dependente em vez de autônoma” (Ahmed 2015, 22). Ademais, o que é perceptível na época histórica em que ocorreram os acontecimentos referidos, de acordo com o dispositivo emocional vigente, “imerso em uma matriz patriarcal”, certas emoções são consideradas legítimas para as mulheres e outras não (Garcia-Diaz 2023, 2)3.

A segunda noção fundamental é a de “resistências emocionais”, que, para Rosón e Medina Domenech (2017, 420), são “procedimentos delicados [...] dotados de afetividade” que as pessoas elaboram e são capazes de desafiar os dispositivos emocionais. Desses procedimentos, as autoras elencam “comportamentos, ideias, ações, gestos, rumores, materiais, fotografias, canções, cheiros, performances ou palavras”. Alguns destes aparecem no desenrolar da trama descrita, mas, além deles, outros como reclamar, matar, tentar suicidar-se e escrever, surgem como procedimentos de resistência utilizados por Marília ante as injunções do dispositivo emocional.

As fontes utilizadas neste artigo foram o prontuário psiquiátrico de Marília - que inclui relatório médico, exames laboratoriais, receituário e uma carta escrita por ela - e notícias de jornais paulistas que repercutiram seu crime. Metodologicamente, inspirei-me, para analisá-las, nos trabalhos de Sara Ahmed e Natalie Davis, que considero que se complementam na tarefa proposta.

Ahmed (2015, 24) propõe que, em vez de perguntarmos “o que são as emoções”, perguntemos “o que fazem as emoções”, ou seja, o que elas produzem. Para a autora, é importante rastrear a maneira como as emoções circulam entre corpos, colam-se a estes e como se movem. Por meio desse rastreamento, torna-se possível compreender como se produz um sujeito emocional, como emoções são caracterizadas como pertencentes a certos sujeitos e não a outros, dentro de um dispositivo emocional que move, faz sentir, conecta os sujeitos, mantém e dá um lugar para viverem Ahmed (2015, 36). O crime de Marília, e o que se segue a ele, torna-se situação privilegiada para a visualização do movimento das emoções e para a construção de sujeitos.

Natalie Davis, com seu interesse pela história das mulheres (1997) e pelas “múltiplas formas de se contar uma história” (2000, 105), forneceu a inspiração para o trabalho com as fontes e com o ritmo da narrativa aqui apresentada. A atenção às relações entre o macro e o micro, entre poderes, saberes e resistências diversas; o trânsito entre provas e possibilidades, entre verdades e verossimilhanças; o desvelo com os vestígios e minúcias da documentação, além do recurso à imaginação ou invenção criativa, “construída pela atenta escuta das vozes do passado” (Davis 1987, 21), observados pela autora em diversos trabalhos, marcam o caminho trilhado neste texto.

Na leitura das fontes, além das variadas peças necessárias para montar o quebra-cabeças da trama, busquei encontrar as palavras que indicam emoções, palavras recheadas de significados diversos ao longo dos tempos. Entre as diferentes emoções que emergem nos textos, agrego sobre os termos “tristeza” e “ira” um conjunto de outras palavras (como temor, medo, desesperança, rancor, raiva, ódio, vergonha). A tristeza é definida, no vocabulário vigente na língua portuguesa, como falta de alegria, desalento, esmorecimento, “momento em que prevalece o estado de melancolia, de desânimo, de aflição”; enquanto a ira é definida como um “intenso sentimento de ódio, de rancor” que pode ser “dirigido auma ou mais pessoas em razão de alguma ofensa, insulto etc.”, ou ainda como o “rancor generalizado em função de alguma situação injuriante; fúria, cólera, indignação” (Houaiss 2009). Essas definições dicionaristas contemporâneas permanecem as mesmas das delimitadas no período analisado, entretanto, neste artigo, não tomo esses significados como premissa, mas sim procuro as palavras que nomeiam emoções nos documentos, buscando vestígios do que as compunham; dessa forma, respeito a temporalidade de sua produção e o sentido que ganharam na modelação do sujeito Marília.

Seguem a esta abertura três seções. Nelas, as narrativas oriundas das fontes - dos articulistas, do médico e de Marília - são expostas, com o intuito de delinear e compreender que emoções emergem e como elas se movem. No epílogo que fecha o texto, apresento uma reflexão no sentido proposto por Ahmed, mostrando o que fazem as emoções, ou seja, como elas operam no interior de um dispositivo emocional que estabelece lugares, possibilidades e limites para as mulheres, além de resistências, produzindo o sujeito Marília.

Primeiro ato: pelos jornais, um crime e sua autora

Dois dos jornais de maior circulação na cidade de São Paulo, o Correio Paulistano e o Estado de São Paulo, noticiaram o acontecimento que mudou o rumo de algumas vidas após o crime cometido por Marília. Em letras garrafais, como costumeiramente se apresentam as notícias policiais, as manchetes têm também o habitual tom dramático. Em sua edição 25.651, da quarta-feira, dia 18 de outubro de 1939 - um dia depois do ocorrido -, o Correio noticiou: “NA AVENIDA SÃO JOÃO. Ameaçada de abandono, pelo amasio, a mulher não teve relutância em tirar-lhe a vida - Antecedentes - A criminosa apresentou-se à polícia” (Correio Paulistano 1939, 7). O Estado de São Paulo, numa manchete um pouco mais contida, apresentou o acontecimento em sua edição 21.496, do mesmo dia: “ASSASSINOU O AMANTE. Enquanto o amásio dormia, agrediu-o a golpes de machadinha e tiros de revólver” (Estado de São Paulo 1939, 8).

O enredo das notícias é bastante similar e, para contar esta história, misturei os dois. Em ambos, os marcadores sociais da diferença, especialmente os de gênero, classe e geração, e os estereótipos que eles carregam (Hirano, Machado e Acuña 2019), operam na construção dos “personagens” da “tragédia”, como afirma o Correio da Manhã (Correio Paulistano 1939, 7). Marília é descrita como uma mulher de 31 anos, casada, dona de casa e residente no interior, que foi assediada por um homem mais velho, bem situado na vida, que lhe fez “propostas até que conseguiu seu intento” (Estado de São Paulo 1939, 8), venceu sua “resistência” (Correio Paulistano 1939, 7) e a fez separar-se da família, abandonar o lar e seus filhos. O encontro ocorrera “há cerca de cinco anos [quando] Marília, em viagem a São Bernardo, veio a conhecer Armando [...] datando daí a união do casal” (Correio Paulistano 1939, 7). Armando Silva, o homem mais velho, tinha 41 ou 42 anos - a depender do jornal - e era “gerente geral da Seção de Abastecimento”, da Estrada de Ferro Sorocabana. Abandonando “a esposa e dois filhinhos”, fora morar com Marília no “apartamento n.º 10, 5º andar da avenida S. João, 1508” (Estado de São Paulo 1939, 8), na capital do estado, local da “brutal ocorrência” (Correio Paulistano 1939, 7).

Sobre o sedutor Armando, homem casado, com bom emprego e possivelmente boa renda mensal, dez anos mais velho que sua “amásia”, pouco mais se fala. Em contrapartida, sobre a seduzida Marília, há muito mais nas notícias dos diários paulistas, como afirmações de que ele ameaçara abandoná-la, planejando voltar para sua família e “inculcando-lhe que voltasse para a companhia de seu marido em Presidente Prudente” (Estado de São Paulo 1939, 8).

De acordo com o dispositivo emocional vigente na época, compartilhado pelos articulistas dos jornais e seus leitores, era extremamente complicado visualizar Marília como alguém plenamente normal. A primeira transgressão, sinalizando uma anormalidade moral - que, ao ser tardiamente decifrada e/ou tratada, não evitara o crime -, foi a separação da família, o abandono do marido e dos filhos, para viver “em companhia de outro homem” (Correio Paulistano 1939, 7). Se, na prática, muitas mulheres faziam o mesmo que Marília, insatisfeitas e maltratadas em casamentos infelizes ou encantadas com promessas, esperançosas por mudanças, dentro dos limitados espaços de liberdade aceitos para as mulheres comuns naquele tempo e lugar, diferentes discursos prescritivos (das famílias, das religiões, da medicina, da polícia, da justiça e da própria imprensa) não poupavam tais mulheres quando estas recusavam ou resistiam ao papel naturalizado de mãe-e-esposa (Cunha 1989; Maluf e Mota 2006; Wadi 2009).

As três primeiras décadas do século 20, no Brasil urbano, foram décadas de mudanças no comportamento feminino que “incomodaram conservadores, deixaram perplexos os desavisados, estimularam debates entre os mais progressistas”. Tais mudanças iam de uma ocupação cada vez mais intensa do espaço público por mulheres de classes médias e altas, “as chamadas de ‘boa família’, que se aventuravam pelas ruas da cidade para abastecer a casa ou para tudo o que se fizesse necessário” (Maluf e Mota 2006, 368), até a participação ativa em organizações feministas “demandando publicamente direitos políticos” (Caulfield 2000, 138). Marília, como indica a carta encontrada junto a seu prontuário, aderiu, junto com seu amante aos novos costumes de frequentar espaços públicos, bares e restaurantes. Possivelmente estivesse interessada em seus direitos políticos (votar, por exemplo, direito conquistado em 1932), mas talvez se preocupasse, como muitas outras mulheres, com “o direito à liberdade licenciosa dos costumes ou de poder imitar os homens em seus erros”, tal como descrito na Revista Feminina (Caulfield 2000, 138). Ainda que tivesse um amante, com o qual pretendia, quiçá, casar-se, se ambos obtivessem a separação legal, afirmou sentir-se desconfortável com ocupar esse lugar, dizendo-se feliz quando Armando a apresentava aos amigos como sua esposa e sofrendo por não ter junto a si seus filhos4.

Parecia claro, aos olhos dos articulistas, que uma relação que começara com a dissolução de duas famílias fatalmente não terminaria bem. Assim, em ambas as notícias, a inviabilidade daquela é marcada:

Passados os primeiros tempos de vida em comum, as rusgas começaram a aparecer, tornando-se insuportável a convivência dos amantes. Ultimamente, segundo declarações da criminosa, essa situação chegara ao auge, com a constante ameaça feita por Armando de abandoná-la. (Correio Paulistano 1939, 7)

Inúmeras discussões sobrevieram pelos motivos mais fúteis, isto pelo azedume do gênio e pela falta de paciência e agressividades que caracterizavam suas relações. (Estado de São Paulo 1939, 8)

Como as mulheres visualizadas por Caulfield (2000) e Maluf e Mota (2006), Marília circulava pelo espaço público, frequentando, junto com Armando, restaurantes e cinemas, e, sozinha, certamente outros lugares, como lojas e mercados. Porém, diferentemente de mulheres que se juntaram aos homens - especialmente no período entreguerras - em trabalhos diversificados, ocupadas em garantir sua subsistência - dividindo, ou não, tal tarefa com homens de suas famílias - ou movidas por outras questões, como a própria liberdade de escolher ter uma profissão, não há qualquer indicativo nas fontes de que Marília fosse uma delas, de que tivesse trabalho formal e renda própria. As fontes indicam claramente o contrário, a dependência de Marília de Armando, dependência econômica e emocional.

Contradizendo as estatísticas brasileiras - daquele tempo e até hoje - que mostram que as mulheres matam muito menos os homens com os quais estão envolvidas sexual e afetivamente do que eles a elas (Corrêa 1983; Rinaldi 2015), Marília tomou a decisão de matar seu amante ou, conforme anunciou o Correio Paulistano, “a mulher não teve relutância em tirar-lhe a vida” (Correio Paulistano 1939, 7). O segundo sinal de anormalidade daquela mulher saltava aos olhos dos articulistas, pois ela premeditara o crime. Marília teria confessado isso na Central de Polícia, para a qual rumara após o ato. Com pequenas variações com relação ao horário do crime e da apresentação à polícia, bem como ao número de tiros desferidos, noticiados pelo O Estado de São Paulo, o Correio Paulistano contou que:

Marília tomou uma resolução: eliminaria seu amásio. Foi ontem o dia escolhido. Muniu-se de uma machadinha e um revólver, cerca das 6.30 horas, dirigindo-se ao quarto de Armando, que dormia.

Calmamente, vibrou-lhe vários golpes na cabeça, e como ele, acordando, ainda resistisse, desfechou-lhe dois tiros.

Praticada a agressão, Marília fez sua “toilette” e foi procurar um advogado, que a aconselhou a apresentar-se à polícia. Assim o fez às 9.30 horas. (Correio Paulistano 1939, 7)

O terceiro indício de anormalidade da protagonista, sem questionar sua sanidade mental, ao contrário, enfatizando a racionalidade do ato, emergiu com o relato de que a “criminosa”, que premeditara seu “bárbaro crime”, após tê-lo cometido, tivera a calma de fazer “sua ‘toilette’”, antes de procurar um advogado e apresentar-se à polícia (Correio Paulistano 1939, 7).

Dentro dos padrões de gênero e classe vigentes, era aceitável que Armando pudesse ter uma amásia ou mesmo mais de uma família, se as pudesse prover, mas se não conseguisse mais sustentar uma dupla vida, poderia abandoná-la tranquilamente voltando à legalidade do casamento. Com a justificativa “de que sua situação financeira não comportava as despesas que [ela] fazia”, Armando ameaçou abandonar Marília. Esta, porém, não se conformou com a ideia do abandono, não aceitou o rompimento das promessas e protagonizou uma “violenta cena de sangue” quando “liquidou com a vida do amante a golpes de machadinha e a tiros” (Estado de São Paulo 1939, 8).

Após ter ciência do acontecido, a polícia seguiu os procedimentos de praxe: a polícia técnica compareceu ao local do crime, com “o médico legista de plantão no Gabinete Médico Legal, Dr. Curado Fleury”, que realizou o exame na vítima e constatou que Armando “apresentava ferimentos no frontal, alcançando o temporal do lado esquerdo e perfurações de bala no corpo”. A seguir, o cadáver foi removido para o necrotério do cemitério do Araçá, para ser autopsiado (Correio Paulistano 1939, 7).

Acompanhada do advogado e tendo prestado seu depoimento, Marília, em seguida, “retirou-se para sua residência”, conforme noticiou O Estado de São Paulo (1939, 8). O inquérito seguiria na “3ª. Delegacia a cargo do dr. Carlos Pimenta”, tendo sido arroladas “várias testemunhas”. Terminava o primeiro ato de uma tragédia que, segundo o Correio Paulistano, “é daquelas que emocionam profundamente” (Correio Paulistano 1939, 7).

Segundo ato: a internação psiquiátrica

Na tarde do dia em que se apresentou à polícia, Marília chegou ao Sanatório Pinel. Inaugurado em 1929, idealizado por Antônio Carlos Pacheco e Silva - expoente da psiquiatria brasileira daqueles tempos -, a instituição era voltada para os grupos sociais mais abastados. Construída em uma região periférica da cidade, tinha pavilhões que comportavam até 120 internos, separados por sexo e diagnósticos. Sua propaganda indicava que lá se seguiam os preceitos mais avançados da ciência médica, com tratamentos inovadores (Lanzellotti 2018; Couto 2020).

O “exame psíquico” constante no documento clínico indica como Marília foi parar no sanatório:

Na tarde do dia 17 de outubro, passado, foi trazida pela Sr. Santos Souza a este Sanatório, sob o pretexto de fazer companhia à sua esposa d. Julia, imã da nossa observanda. Nessa noite viemos a conhecer D. Marília, pois fomos solicitados a ministrar-lhe um calmante, por se encontrar “meio nervosa”. Tivemos, então, oportunidade de verificar que a paciente apresentava-se deprimida, inquieta, chorosa. Uma senhora que fazia companhia à d. Julia, informou-nos que a causa deste estado era ter d. Marília “brigado com seu marido”.5

O relato segue contando que, na manhã seguinte, ficara o psiquiatra - cujo nome não é mencionado - sabendo pelos jornais “de uma violenta cena de sangue, na qual d. Marília tomava parte como autora, matando seu amante a machadadas e a tiros.” Sua primeira ação fora interrogar a senhora que lhe havia informado sobre a briga, a qual “declarou ignorar a existência de qualquer coisa além do que nos havia relatado” e contou-lhe que Marília “não dormira absolutamente nada, não tendo feito outra coisa do que chorar a noite toda”6.

Uma sequência de acontecimentos sucedeu na mesma manhã: Marília golpeou o “antebraço esquerdo com uma faca, produzindo leve ferimento inciso”; o médico solicitou a presença urgente do Sr. Santos Souza; este, comparecendo ao Pinel, solicitou a internação de sua cunhada, “pois suspeitava que a mesma apresentava perturbação mental ao mesmo tempo que receava nova tentativa de autoeliminação”7; o pedido de internação foi prontamente aceito pelo médico e Marília entrou formalmente no Sanatório Pinel naquele mesmo dia 18 de outubro, sendo registrada como uma mulher de 30 anos, branca, brasileira, casada, doméstica, residente e procedente de São Paulo8.

Marília fora levada ao mesmo sanatório em que já se encontrava internada sua irmã Julia, para servir de acompanhante àquela, segundo seu cunhado. Com relação a isso, algumas perguntas ficaram soltas no ar: Por que, se já havia outra mulher acompanhando Julia? Santos Souza não sabia sobre o crime de Marília, como parece indicar o mesmo registro? Foi uma estratégia do cunhado para escondê-la ou protegê-la? Foi porque ele efetivamente acreditava estar ela louca, como registrou o médico?

Os documentos disponíveis não oferecem respostas exatas a essas questões e o que posso afirmar, a partir da internação e alocação de Marília no Pavilhão 27, é que ela foi examinada como era habitual, sendo então preenchidos os itens impressos no documento clínico. Os exames “físico” e “somático” registraram aspectos como não era “portadora de defeitos físicos, congênitos ou adquiridos”; tinha “cicatriz antiga, no sentido longitudinal, mediano do baixo ventre” e “cicatriz recente no sentido transverso, no terço superior do antebraço esquerdo, consequente à tentativa de suicídio”; teve “dois partos normais e oito abortos provocados”; era uma “moça de estatura normal e constituição robusta”. O exame “neurológico” indicou não haver “nada digno de registro” e o exame “mental” registrou “associação um tanto lenta de ideias denunciando um leve estado confusional”, “perturbações cenestésicas - impressão de que o coração dispara e de que o cérebro cresce, em consequência de uma campainha que se aloja dentro desse órgão”, e, “por vezes, raptos imaginativos” aos quais se segue “um pranto doído”9.

O exame “psíquico”, como os demais, tem uma série de quesitos que devem ser observados. O intuito é detectar, na conversa com “pacientes”, sintomas e sinais que permitam o estabelecimento, pelo psiquiatra, de um diagnóstico. O texto concernente ao exame “psíquico”, pelo menos nesse caso específico, parece ter sido escrito apenas alguns dias depois da internação10. As informações sobre a trajetória anterior foram as primeiras a constar dele, que seguiu com o relato de que a “paciente [...] apresentava-se um tanto excitada, com ideias melancólicas e de suicídio e com crises de ansiedade e angustia, chorando e lamentando-se continuamente”; que - como já havia sido detectado no exame mental - manifestava “distúrbios de cenestesia”, além de pronunciar “frases soltas, sem ligação com o que se lhe perguntava, tais como: ‘O Gamelin já matou todos os alemães?’, ‘Coitada de Varsóvia!’, ‘Todos diziam que eu era médium’ etc.”. 11

O médico, entretanto, não se rendeu à confusão de Marília durante o exame e interrogou-a “energicamente” - numa estratégia de reduzi-la a uma posição de sujeição ao seu discurso, o discurso científico -, quando então ela teria respondido “com acerto às perguntas que lhe eram propostas”. Disse “não se lembrar de haver tentado cortar o braço com uma faca” e solicitou que “a transferíssemos de pavilhão, alegando que não gostava do banheiro e da cara das enfermeiras”. O exame psíquico segue com o registro de que, em 22 de outubro, tivera “oportunidade de entreter longa conversa com a paciente”, a qual

mostrava-se ainda deprimida, chorosa. Respondia de má vontade às perguntas que formulamos. Não quis nos dar a mão, conservando-se arredia e olhando-nos com a fisionomia colérica. Interrogada diz que não tem nada com ele e afirmou: “fiz aquilo porque me obrigaram (não responde quando lhe perguntamos 'quem')”. Conta que não pode dormir “porque entram a toda hora em seu quarto e não a deixam pegar no sono”. Frequentemente interrompe as respostas que nos está dando e diz em tom ameaçador: - “Vocês todos vão ver agora, todos vão ser dominados pelo Stálin, eu falei com ele esta noite.” Queixa-se de que tem a vista ruim “por coisa que me fizeram nos olhos e hão de me pagar”. Tem se recusado, por vezes, a tomar seus alimentos, chegando nessas ocasiões a agredir as enfermeiras.12

Na sequência de seu relato datilografado, escreveu que, “quatro dias depois, a 26 de outubro, [Marília] mostrava-se mais dócil, mas por outro lado, um pouco mais ansiosa”, externando “frequentemente ideias de suicídio” e “choro fácil”. Uma “pequena equimose no supercílio” havia sido feita quando “bateu violentamente a cabeça na parede” e seu “ritmo do sono permanece bastante irregular, necessitando barbitúricos para dormir”. Nessa entrevista com o médico, Marília teria dito que não estava “louca e [que] precisa sair do Sanatório para poder tratar do seu caso”, afirmando, entretanto, que nada diria “aos Senhores, só à polícia”. Desse dia em diante,

apresentou-se sempre um pouco deprimida, com frequentes crises de choro, sono e apetites escassos. Tem momentos em que se revolta contra a sua internação, afirmando precisar sair a fim de procurar “um jornalista como o Chateaubriand para contar a culpa dos outros, pois os que a enganaram também precisam ser desmascarados”. Não nos fornece maiores explicações, porém, sobre o sentido dessa frase. Mostra-se, contudo, mais cordata e obedece facilmente às nossas prescrições. Passa os dias a escrever o que ela chama a história de sua vida e vezes por outra, tenta fazer um trabalho de agulha. Está sob severa medicação desintoxicante e tônico-nervina, medicação na qual vamos prosseguir e aguardar um maior tempo de observação para um pronunciamento mais preciso sobre o presente caso.13

Em seu último registro no exame “psíquico”, agora manuscrito - o que sugere que foi escrito posteriormente às informações anteriormente transcritas -, o médico atestou que, após ter se inteirado do “fato ocorrido”, dera “ciência à polícia” de que Marília estava internada no sanatório. Por fim, escreveu que, no “período que a paciente permaneceu hospitalizada o quadro clínico acima descrito não apresentou qualquer modificação, não nos permitindo uma conclusão definitiva sobre o caso”. Ao final do documento clínico, estão anexos exames laboratoriais, receituário e uma carta escrita por Marília, sob a qual está anotado em letras maiúsculas ARQUIVAR14.

Visões de classe, de gênero, concepções criminológicas e psiquiátricas faziam um sanatório psiquiátrico como o Pinel ser percebido por muitas pessoas, especialmente homens - como o cunhado Santos Souza -, como preferível a uma prisão e mais adequado, talvez, às mulheres criminosas como Marília, cuja natureza havia sido corrompida ao rebelar-se contra os desígnios da feminilidade e contra os papéis sociais de gênero: primeiro abandonando o lar, o marido e os filhos; depois matando seu amásio (Harris 1993; Castells 2021). Porém, sem um diagnóstico que lhe permitisse ficar internada, Marília teve alta um mês depois, em 18 de novembro de 1939. Terminou, desse modo, sua passagem pelo Sanatório Pinel, pois seu prontuário não tem registrada nenhuma entrada posterior.

Finalizado o inquérito policial, possivelmente foi iniciado o processo judicial no qual Marília pode ter sido pronunciada, levada a julgamento, absolvida, julgada inimputável ou condenada. A primeira hipótese poderia ocorrer se os julgadores acreditassem que “os percalços domésticos e a dor associada a essas experiências podiam levar a um estado psicológico considerado anormal” (Castells 2021, 117), o que abriria espaço para a segunda hipótese, pela qual ela poderia cumprir um tempo de internação no Manicômio Judiciário Franco da Rocha. A terceira hipótese a levaria para a Penitenciária do Estado, pois não havia prisão feminina na metrópole em expansão15. Nesse caso, sua pena poderia ser menor, quiçá, do que a aplicada a um homem que cometera assassinato, pois o entendimento vigente entre alguns envolvidos nos debates para a construção de um presídio feminino era de que “a fraqueza física e a superior afetividade da mulher - palavras sempre as mesmas empregadas pelos escritores - explicam as atenuações que lhes são concedidas no regime das penas” (Marrey Jr. 1941, 480).

O crime de Marília foi cometido num momento histórico marcado por intensos debates médico-jurídicos sobre questões relativas à responsabilidade penal, em que crimes entendidos como motivados pela paixão (Corrêa 1983; Jimeno 2004; Saydi 2016), como poderia ser entendido o dela, tiveram relevância. Para Dias (2022, 2), este foi “um ponto chave do debate público sobre a criminalidade levado a cabo pela comunidade argumentativa que reunia representantes das ciências médicas, psicológicas e jurídicas na primeira metade do século XX”, quando houve também “intensa rediscussão das leis penais, bem como a feitura e seguinte implementação de um novo Código Penal”.

Terceiro ato: Marília por ela mesma

Marília faz parte de um grupo de 30 pessoas, entre as mais de 4.500 internadas no Sanatório Pinel entre 1929 e 1944, que escreveram cartas. Escreveu, talvez, pela necessidade de se comunicar com alguém de fora do espaço, alguém que compreendesse o que se passava com ela, como seus pais, a quem endereçou sua única carta; quiçá, pela necessidade de construir um testemunho válido sobre seus atos, contrapondo-se aos saberes expertos, tanto os da psiquiatria quanto o policial, com os quais se viu enredada; ou mesmo, como forma de fazer uma catarse, reorganizando suas emoções a fim de dar sentido a tudo que se passava com ela, movimento no qual se produz uma escrita de si (Foucault 1992; Harris 1993; Wadi 2009, 2017).

A carta nunca chegou aos seus destinatários como era comum em muitas instituições psiquiátricas, nas quais os escritos dos internos ficavam retidos em seus prontuários como testemunhos da loucura, ilustrações capazes de confirmar patologias e possibilitar o estabelecimento de diagnósticos; ocasionalmente utilizados como suplementos para avaliar as resistências dos internos (Villasante et al. 2018; Wadi, Ordorika e Golcman 2019). Entretanto, apesar de passar “os dias a escrever o que ela chama a história de sua vida”16, conforme o psiquiatra, o que resultou em um texto longo - “392 linhas manuscritas a lápis”, em que fez uso “das margens esquerda e superior” (Barbosa 2019, 451) -, aquele não enxergou na carta, ao que parece, nada mais do que a manutenção de um mesmo quadro clínico, ou seja, uma mulher deprimida, com crises de choro, sono, apetites escassos e ideias suicidas. A possível aspiração de obter mais informações não foi alcançada, como exprimiu no exame psíquico o médico, dizendo - como já citado - que não obtivera “uma conclusão definitiva sobre o caso”17.

Entretanto, na versão de Marília da “história de sua vida”, entrevê-se muito mais do que os sintomas destacados pelo médico. Afirmando “aqui que vou escrever um pouco de minha vida”, ela começou a escrever no dia que lhe haviam dito ser: “2, dia de Finados”. O enredo da carta é marcado pelo que motivou todos os acontecimentos que vimos até aqui: o encontro de Marília com Armando. O texto tem um tom, de quando em quando, delirante, certo ar caótico, como às vezes soa à linguagem da loucura. Vezes outras é racional, bem-organizado, segue uma linha do tempo. Entrelaça, nessa linha do tempo, pessoas, lugares, relações e emoções que motivaram os eventos que narra, justificando-os. Não fala diretamente de seu crime, mas menciona sempre a morte - não somente a de Armando, mas também a buscada por ela -, como solução para muitos dos impasses que cercavam sua relação com quem queria “viver o resto da vida”18.

Marília começa contando que conheceu Armando em um trem. Decididos a viver juntos, ela mudou-se com seus dois filhos para São Paulo, depois que ele mandou caminhões buscarem sua mudança. Nessa época, o marido lhe escrevia cartas - “sempre de gente malcriada” - o que cessou com o tempo e a decisão dela de não mais voltar para casa19. Aos primeiros tempos felizes, seguiu-se período de imensa tristeza:

ele era tão bom para mim só ficou mau quando um dia me disse que os meninos eram muito maus e eu tinha que os levar ao pai, [ele] não tinha obrigação de olhar aturar os meninos, o pai deles é que tinha, que os mandasse o mais breve possível, que o aborreciam muito, eu fiquei triste, fiz ver [...] por bem e com bons modos que eu não poderia viver sem os meninos, eu nunca me separei dos meus filhos e que não aguentava as saudades, até disse, antes quero morrer do que viver longe dos meninos.20

Marília narra que, a despeito de seus pedidos, Armando foi irredutível em sua decisão, porém lhe prometeu que poderia sempre visitar os filhos e que, em breve, poderia trazê-los de volta:

prometeu de ir sempre comigo ver os meninos, [dizendo] que até era bom sempre dávamos um passeio e no dia 22 de janeiro de 1936 meus filhos foram-se e desde aí começou o meu desespero. [Uma] vez Armando foi comigo em Presidente Prudente, só depois de um ano é que pude ver os meus filhos, foi no mesmo dia 22 de janeiro de 1937 que cheguei lá em Anhumas e Armando ficou em Presidente Prudente, mandou um chauffeur japonês levar-me e com hora certa para voltar. Oh que tristeza, os dois ficaram chorando perto dos pés de café na saída lá do lugar, meu sofrimento era tanto, achava o mundo pequeno, agora acho o mundo comprido. Voltamos para casa São Paulo, no caminho ele me dizia que havíamos de fazer bastante economia para ele me comprar uma casa, para depois os meninos voltarem. Eu enchi-me de alegria e procurava fazer tudo o que Armando dizia, mas pedi a ele que de 6 em 6 meses eu queria ir ver os meninos, ele disse que sim.21

Apesar da tristeza de viver longe de seus filhos, Marília afirmou conformar-se, pois Armando era muito bom para ela. Ele lhe contara “que já fazia muito anos que não vivia com a sua mulher”, dizendo ainda: “ganho muito dinheiro na Sorocabana, mas não sou feliz, vivo sem gosto, só tive vontade de viver depois que te conheci”. Eles eram felizes, escreveu, saiam para “todos os lugares onde tinham os conhecidos, sempre me apresentava como mulher dele”. Na sequência dessa frase, porém, já indica sentir medo: “uma mulher sem homem não pode viver [...] eu sempre tinha a impressão [de] que ele podia deixar-me, essa ideia atormentava-me, sem os filhos, sem marido sem mãe, sem pai, nunca tive o carinho duma mãe, sem tudo”22. O medo enunciado por Marília é compartilhado com outras mulheres de seu tempo, pois é parte de um dispositivo emocional, que coloca como único lugar possível para uma mulher, o da família nuclear, uma família onde o homem é provedor e a mulher a cuidadora.

O medo anunciado pelo pressentimento do abandono, conforme Ahmed (2015, 105), “funciona através e sobre os corpos de quem se vê transformado em seu sujeito”. Ele é justificado nas linhas seguintes quando Marília narra uma série de acontecimentos que alteram os primeiros três anos de vida em comum: “éramos felizes na rua Tutoia, sempre me telefonavas e [eu] sempre estava em casa bordando, sempre vinhas na [...] hora certa, quanto eras bom”23. Entretanto, “tudo era uma faísca elétrica” e Armando “não podia nem mais me ver falar”, tudo lhe aborrecia, escreveu Marília. A culpa pela mudança de Armando, ela atribuiu a alguns amigos, que lhe “arrastaram tão depressa para longe de mim”24, especialmente a

Carlos, chefe do escritório dos armazéns de Abastecimentos da Sorocabana. Esse desgraçado é que levava o Armando a tudo o que era macumbeiro e ainda me queriam obrigar a ir. [...] Fui humilhada até o extremo, fez de mim o que quis, até no Juqueri me queria levar, tirar-me os filhos, não deram sossego, mas esses todos aqui ficam para arcarem com as suas culpas, todos bem o sabem, feliz os que morrem.25

Lampejos da ira, que ganha proporção elevada quando Marília golpeia Armando e lhe dá os tiros que enfim lhe tiram a vida, parecem surgir na menção aos “desgraçados” amigos - “estes micróbios da terra que te destroem [...] que vivem atrapalhando o caminho um do outro”26 - que conduziram o “amante” para longe dela, levando-o a querer abandoná-la.

Marília se queixa da falta de escuta. Ninguém parece estar interessado em entender seus sentimentos, a escutar seus argumentos, suas motivações, suas dores. Primeiro foi Armando, que se aborrecia com ela, depois “nem os da polícia me quiseram escutar mais, eu ainda tinha muito que dizer aos homens”27; enfim, os que circulavam no Sanatório: “aqui andamos esta cambada de idiotas a olhar uns para os outros e a perguntarem tolices, a senhora está boa, passou bem e hoje está melhor e amanhã está pior, tapeando uns aos outros”28.

O Sanatório surge na carta como esse lugar em que imperam tolices, mentiras, enganação, não só - como se poderia pensar a princípio - por parte de quem está ali como paciente, mas principalmente por parte de “doutores [que] aqui se vendem”, para quem tem dinheiro29. A percepção de Marília é de que havia um conluio entre o psiquiatra-chefe e a família de seu amante morto:

mas quero que pensem que tudo digo em meu juízo perfeito, que não pense esse Pacheco e Silva, que vive de combinação com a mulher do Armando de querer que vou ficar louca. Eu já vi a mulher de Armando e a filha aqui combinando tudo com ele, esse é o pior de todos aqui o que mais me persegue, ele até é parecido com o Armando e ainda se chama da Silva. Mas não adianta, eu vou arranjar um advogado e ele tem que dizer por que eu estou aqui, eu só tenho que dar contas aos polícias.30

Marília afirma sua sanidade e, num contraponto com momentos em que lamenta a dependência das mulheres dos homens, afirma sua liberdade; ou, ao menos, o desejo de obtê-la, mesmo que, para resistir, chegasse aos extremos, como o assassinato de outrem e, quiçá, a própria morte posteriormente, como parece ter sido o seu desejo:

Comigo eu faço o que quero ninguém manda em mim [...] nada temo na terra só acho consolo na morte. Armando traiu-me até para morrer, segurou-me as mãos, ainda no teu último instante me dominaste. Quiseste que viesse morrer para onde me querias trazer, tinhas prazer em trazer a todos para cá e vim mesmo em meu perfeito estado de sentidos, querias que morresse aqui, faço-te a vontade aqui morro.

Eu sempre fui escrava dos homens, o dia que me libertei tudo escureceu em minha vida e os homens são umas feras humanas, homens são os escravos do dinheiro, os homens tudo fazem, tudo resolvem, tudo fazem, levam as mulheres ao extremo, criam as coisas mais lindas da terra e provocam a destruição de tantos castelos, de tantos bons pensamentos dos outros. Eu só encontro alívio na morte. É a única coisa [que] presta na terra, mas porque não foi criada pelos homens. Bendito seja o criador da morte, a morte é o consolo dos aflitos e conforto dos desenganos.31

Epílogo: emoções em disputa

Das perguntas que coloquei na abertura deste texto, creio ter conseguido responder a algumas de forma contumaz. De outras, pude apenas me aproximar sutilmente, imaginando respostas. Foi possível desvelar - entre a evidência e a imaginação - que movimentos e que circunstâncias levaram Marília da Central de Polícia, na qual confessou seu crime, para um sanatório psiquiátrico, bem como colocar em destaque elementos que compunham o dispositivo emocional vigente na época, que fez com que uma criminosa confessa fosse internada em um hospício, em vez de ser presa. Entrelaçou-se, para tanto, uma série de elementos. Em primeiro lugar, a questão legal. Marília não tinha antecedentes e, acompanhada de um advogado, apresentou-se livremente à autoridade policial depois de cometido o crime. Apesar de sua confissão e de todas as evidências de que fora ela a praticante do crime, levantadas pelo laudo policial, o delegado de plantão decidiu que Marília poderia aguardar a instauração do inquérito em liberdade.

Em segundo lugar, já sem certeza, mas com uma convicção muito forte - em virtude dos vestígios encontrados nas fontes e das reflexões oriundas da bibliografia -, acredito que Marília foi levada ao sanatório por seu cunhado, já por este acreditar estar ela louca. Possivelmente, em razão dos sinais externos esboçados: o nervosismo, o choro contínuo, a manifestação do desejo de suicidar-se. O pretexto para levá-la ao Pinel foi o de fazer companhia à esposa daquele, sua irmã. A internação da esposa e depois da cunhada é evidência forte do que pensava aquele homem e de como lidava ele com as emoções manifestadas pelas mulheres. É possível que Santos Souza tenha agido tal qual outras famílias que internavam seus membros disruptivos, com os quais a tolerância é muito pequena, especialmente se são mulheres. Em inúmeros casos, o médico não fazia senão corroborar as impressões diagnósticas da família, ao solicitar essa internação (Sacristán 2009).

Além disso, é possível que ele soubesse exatamente que Marília assassinara Armando, sendo ele quem indicou o advogado que a acompanhou a Central de Polícia, resguardando seus direitos. Assim, tão logo ela foi liberada, levou-a para o sanatório. Talvez sua intenção fosse proteger a cunhada de si mesma, em uma possível tentativa de suicídio (como teria dito ao médico), tentativa feita dentro do Pinel e intenção continuamente mencionada na carta. Ou, porventura, a intenção era proteger quem estivesse próximo a ela de um novo acesso de ira. O que parece mais verossímil é que ele buscava obter diagnóstico que pudesse futuramente atenuar a pena de Marília. Conforme a letra “d”, inciso 2º, do artigo 38 da Consolidação das Leis Penais, aprovada pelo Decreto 22.213 de 14 de dezembro de 1932, “quando o criminoso não estiver em condições de compreender toda a gravidade e perigo da situação a que se expõe, nem a extensão e consequências de sua responsabilidade”, a pena pelo crime pode ser atenuada (Piragibe 1938, 16). Imagens sobre o feminino compartilhadas em diversos âmbitos sociais, inclusive na polícia e na justiça, bem como regulações como a citada, fazem crer que a existência de um diagnóstico de insanidade ou instabilidade mental poderia favorecer Marília, atenuando sua responsabilidade (Harris 1993; Wadi 2009; Garcia-Diaz 2023).

A naturalização de certas emoções como típicas das mulheres, construtoras de suas identidades, mobilizadoras de práticas cotidianas e impulsionadoras de certas ações, como o crime, contribuiu para esse movimento. Na manchete do Correio Paulistano, a tragédia que envolveu Marília e Armando era “daquelas que emocionam profundamente” (1939, 7), o que pressupunha que os leitores assim se sentiriam. Essa notícia, como outras que apresentavam enredos relacionados a crimes passionais, continha todas as características da emocionalidade reivindicada. Os homens, vistos como seres não emocionais, matam suas companheiras afetivas e sexuais principalmente quando se vêm atacados em sua honra - pela infidelidade delas - e, às vezes, por outras razões, como o não cumprimento de tarefas domésticas, como cuidar da casa e dos filhos. Nesses casos, a excepcionalidade de uma emoção intensa é mobilizada como atenuante. Já, as mulheres, consideradas seres emocionais por natureza, matam comumente por medo (do abandono, da insegurança material, do abuso, da violência) e por ciúmes ou para contrapor-se à autoridade masculina (Corrêa 1983; Jimeno 2004; Saydi 2016; Santillán Esqueda 2017). Nesses momentos, há até aparente inversão de identidade, tornando-se elas - as mulheres - pessoas racionais que planejam, que premeditam, que mostram controle das emoções, pois calmamente levam a termo uma decisão, como escreveram os articulistas sobre Marília.

Mas não nos enganemos! Na perspectiva deles, ainda que destaquem tais elementos da trama como evidência de “certa racionalidade”, a supressão da emocionalidade por Marília é, por um lado, sinal de anormalidade e, por outro, o disfarce de uma emoção extremamente negativa: a ira. Teria sido a ira, ao tomar o lugar das emoções positivas, que a levara ao ato bárbaro de assassinar seu amante. Segue a mulher colocada dentro de um dispositivo emocional de longa duração, que construiu o feminino como o gênero emocional, engendrando um poderoso “mito sobre a feminilidade, a partir do qual se erigiu um pilar fundamental da identidade feminina, com altos custos de dependência emocional, simbólica e material frente aos homens” (López Sánchez 2013, 61). Nesse dispositivo emocional, encontra-se Marília, que, quando rompe com as expectativas para seu gênero e classe, tornando-se amante de um homem que inicialmente é provedor em todos os sentidos - inclusive de seus filhos -, mas depois a faz separar-se deles e logo ameaça abandoná-la, tem intensificadas as sensações de incerteza e desamparo próprias da situação histórica de dependência das mulheres dos homens.

Ao contrário dos articulistas, o psiquiatra não viu em Marília qualquer traço de racionalidade, mas sim uma confusão reinante, expressa por “frases soltas, sem ligação com o que se lhe perguntava”. Tais sinais davam crédito à suposição do cunhado, de que ela apresentava “perturbação mental”. Se bem o médico considerou não ter elementos suficientes para emitir diagnóstico, elencou emoções no prontuário que, possivelmente, em outras ocasiões que não envolvessem uma criminosa confessa, serviriam com perfeição à elaboração daquele: indicou apresentar-se a paciente “deprimida, inquieta, chorosa”; com “ideias melancólicas e de suicídio e com crise de ansiedade e angústia”; que se mostrara “arredia”, “olhando-nos com a fisionomia colérica”, além de falar em “tom ameaçador”32. Entre a tristeza (dita “depressão”) e a ira (dita “cólera”) encontrava-se Marília no parecer médico.

Imagino que alguns argumentos de Marília na carta podem ter impedido o psiquiatra de emitir um diagnóstico, algo que os representantes do saber médico, por vezes, faziam a partir de um primeiro olhar sobre seus pacientes. Na carta, ela nega estar “louca”; enfatiza que ao médico nada diria, “só à polícia”; afirma que precisava “sair do Sanatório para poder tratar do seu caso” e “a fim de procurar ‘um jornalista como o Chateaubriand para contar a culpa dos outros, pois os que a enganaram também precisam ser desmascarados’”33. Entretanto, parece mais plausível que, ser Marília pessoa amparada por distinto senhor, possivelmente de posses - o cunhado Santos Souza -, tenha influenciado na decisão do psiquiatra; ou a necessidade de Marília apresentar-se à justiça, por convocatória desta. Logo, o psiquiatra pode ter optado por não emitir diagnóstico, deixando que, seguidos os trâmites legais, fosse aos médicos legistas do Estado solicitada a emissão de parecer sobre a sanidade mental de Marília.

Igualmente, creio ter sido possível compreender o que fizeram as emoções com Marília. Tanto pelos jornais quanto pelo relato médico, a mobilização de determinadas emoções construiu Marília como alguém fora da ordem de gênero, fosse como criminosa, fosse como louca. Mas não foi essa mesma Marília que emergiu de sua carta, ainda que sua escritura esteja marcada por essa mesma ordem de gênero, por esse mesmo dispositivo emocional, desde o qual sua subjetividade foi construída. A carta de Marília apresenta muitos dos traços de uma escrita catártica que busca expiar culpas, medos, desejos e, portanto, ela afirma seu sofrimento constante nas relações amorosas, com seu marido e com Armando; justifica seu ato drástico, ora por esse mesmo sofrimento, ora por “já ser do diabo”; pede que a família, que a perseguiu, olhe por seus filhos, que não os deixe com o pai, porque este não lhes dá educação: “tenham dó do Pedrinho e do Augusto”34. Ao mesmo tempo, pretende ser testemunho do que foi sua vida: “vou escrever um pouco da minha vida”. Sua escritura tem a intenção de revelar a quem a lesse os caminhos e os percalços que a levaram a matar o homem com que dividia essa vida.

A carta também se revela como uma escrita de si, na medida em que promove subjetivação, construindo Marília como alguém que, dentro do dispositivo emocional que constituía o mundo em que vivia e sua naturalização de certas emoções como fundantes da identidade das mulheres (López Sánchez 2013), mobilizou-as, situando-se ora dentro, ora fora dessa identidade. Emoções enunciadas na carta como felicidade, tristeza, medo, arrependimento, humilhação, condizentes com uma identidade feminina idealizada - à qual aderiam as mulheres - foram, no entanto, sobrepostas, pela mobilização de outra emoção, a ira, em geral considerada equivocada, injusta e exagerada.

Acredito, dessa forma, que também a pergunta sobre se foi o crime resistência emocional ante o sofrimento daquela mulher tenha sido respondida. Seguir por uma linha que Deleuze chamou “mortal” foi a solução encontrada para que ela se colocasse num lugar de protagonismo sobre sua vida. Um protagonismo extremado, porque, ligado à morte, a de outra pessoa e a própria, como que a tornar o suicídio - tentado, não consumado - “uma arte que toma toda a vida” (Deleuze 1992, 141). Nesse caso, as emoções fizeram algo mais do que participar do jogo das “normas sociais e morais que inscrevem significados e orientam as identidades genéricas dos sujeitos” (López Sánchez 2013, 58), pois elas também transmitiram um conjunto de desejos, constituindo táticas de resistência e negociação. No caso de Marília, “a presunção de um direito à felicidade” transformou-se primeiro em tristeza (e medo), depois em ira dirigida às pessoas que ela considerou terem tomado a “felicidade considerada ‘por direito’ a ser” dela (Ahmed 2020, 90).

Talvez Marília tenha pensado em algum momento, em meio às emoções disparatadas: “É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi...” ( Caetano Veloso, “Sampa”, 1978).

Referências

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*O artigo apresenta resultados do projeto de pesquisa “Albertinas, Modestas, Pilares: experiências de mulheres em narrativas da loucura”, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

1Os nomes de todas as pessoas envolvidas na história de Marília — o seu, de familiares e amigos — foram trocados por pseudônimos, no sentido de preservar suas identidades. Os nomes de autoridades públicas, médicos, lugares etc. foram mantidos. A grafia original das fontes primárias e a pontuação foram atualizadas conforme as normas vigentes. As traduções dos textos em língua estrangeira citados foram feitas pela autora deste artigo.

2Prontuário Psiquiátrico - Marília, 18 de outubro a 18 de novembro de 1939, em Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP), Fundo Sanatório Pinel (FSP), doc. n.o 2453, lata CO9642. O prontuário é composto de vários documentos, como o clínico, que tem quatro folhas (preenchidas frente e verso) e anexos. A carta de Marília, um destes, tem 17 páginas.

3Entendo que a possibilidade de estudar emoções se faz somente a partir de uma interseção interdisciplinar, em virtude dos “acordos teóricos partilhados” por disciplinas como a sociologia, a antropologia e a história, que não fazem “uma investigação exclusiva e independente”, mas compartilham em grande parte “um quadro teórico e metodológico” (López 2013, 61). Neste artigo, sigo autoras de referência no campo sociocultural das emoções, especialmente por seus posicionamentos feministas, como López Sánchez (2011, 2013 e 2019), Medina Doménech (2012), Rosón e Medina Doménech (2017) e Ahmed (2015 e 2020).

4Marília, “Carta aos pais”, 2 de novembro de 1939, em APESP, FSP, doc. n.o 2453, lata CO9642, pp. 3, 4.

5Médico, “Exame Psíquico de Marília”, 18 de outubro a 18 de novembro de 1939, APESP, FSP, doc. n.o 2453, lata CO9642, f. 4.

6Médico, “Exame Psíquico de Marília”, f. 4.

7Médico, “Exame Psíquico de Marília”, f. 4.

8“Doméstica” era um termo comum na nomeação do trabalho das mulheres dedicadas aos afazeres domésticos, as “donas de casa”, mas também daquelas que faziam trabalhos para fora (lavadeiras, costureiras etc.) ou trabalhavam em atividades domésticas em outras casas.

9Médico, “Exames físico, somático, neurológico e mental de Marília”, 18 de outubro 1939, APESP, FSP, doc. n.o 2453, lata CO9642, ff. 2, 3v.

10A importância da anamnese como procedimento que permitiria responder a todos os quesitos necessários para a formulação de um diagnóstico correto foi discutida pelo fundador e psiquiatra atuante no Sanatório Pinel, Antonio Carlos Pacheco e Silva, em vários textos. Como exemplo, Silva (1951).

11Médico, “Exame Psíquico de Marília”, f. 4.

12Médico, “Exame Psíquico de Marília”, f. 4.

13Médico, “Exame Psíquico de Marília”, f. 4.

14Médico, “Exame Psíquico de Marília”, f. 4.

15O Manicômio Judiciário, inaugurado em 1934, destinava-se a abrigar criminosos considerados inimputáveis, realizar exames de sanidade mental em réus e dar tratamento aos condenados portadores de doença mental. O primeiro presídio de mulheres da cidade de São Paulo foi inaugurado em 1942.

16Médico, “Exame Psíquico de Marília”, f. 4.

17Médico, “Exame Psíquico de Marília”, f. 4.

18 Marília, “Carta aos pais”, p. 2.

19Marília, “Carta aos pais”, p. 1.

20Marília, “Carta aos pais”, pp. 2, 3.

21Marília, “Carta aos pais”, p. 3.

22Marília, “Carta aos pais”, p. 4.

23Marília, “Carta aos pais”, p. 7.

24Marília, “Carta aos pais”, pp. 5, 7.

25Marília, “Carta aos pais”, p. 11.

26Marília, “Carta aos pais”, p. 12.

27Marília, “Carta aos pais”, p. 15.

28Marília, “Carta aos pais”, p. 16.

29Marília, “Carta aos pais”, p. 13.

30 Marília, “Carta aos pais”, p. 12.

31Marília, “Carta aos pais”, pp. 9, 16, 17.

32Médico, “Exame Psíquico de Marília”, ff. 3, 4. Os trabalhos de Couto (2020) e de Matos e Pereira (2021), ambos sobre mulheres internadas no Pinel, acentuam como emoções similares ou idênticas às elencadas pelo médico de Marília, além da mobilização de marcadores sociais da diferença — como raça, classe e geração —, foram determinantes na elaboração de diagnósticos de várias dessas mulheres.

33Médico, “Exame Psíquico de Marília”, f. 4.

34Marília, “Carta aos pais”, p. 13.

Como citar: Wadi, Yonissa Marmitt. 2024. “Entre a tristeza e a ira: emoções em disputa nas narrativas sobre o crime de uma mulher (São Paulo, Brasil, 1939)”. Revista de Estudios Sociales 90:47-64. https://doi.org/10.7440/res90.2024.04

Recebido: 30 de Outubro de 2023; Aceito: 18 de Abril de 2024

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